Mãe que defendeu filha de abuso sexual é absolvida após 11 anos de espera e dor
Texto: Bruno de Castro e Déborah Duarte
Ilustração: Diogo Braga
Foram 11 anos e seis meses de espera. Mais de uma década sendo acusada de tentativa de homicídio, vivendo sob olhares desconfiados e sob a tensão de ser presa. Tudo isso por ter defendido a própria filha. Agora, enfim, a mulher pode respirar aliviada. Defendida pela Defensoria Pública do Ceará (DPCE), ela teve sua inocência reconhecida e pode finalmente encerrar um longo capítulo de espera e dor.
O caso ocorreu em junho de 2013. À época, a mulher tinha 35 anos e fazia faxina em uma casa, cujo dono permitia que mulheres em situação de prostituição usassem drogas no local. Naquele dia, sem ter como deixar a filha em casa, precisou levá-los ao trabalho e, enquanto tomava banho, antes de ir embora, ouviu o choro desesperado da filha de três anos.
Ao sair do banheiro, encontrou a menina ferida, com sinais claros de violência sexual. “Uma dessas mulheres que o homem permitia que frequentassem a casa para consumir drogas cometeu o abuso sexual. A mãe, vendo a filha naquela situação, reagiu com duas facadas na agressora. Foi uma reação desesperada diante do sofrimento extremo da filha”, explica o defensor público Vagner Júnior, que atuou no caso.
A mãe foi acusada de tentativa de homicídio pelo Ministério Público do Ceará (MPCE). O processo arrastou-se por anos e o julgamento só aconteceu no dia 28 de novembro de 2024. “Ela deixou claro que estava trabalhando, fazendo faxina na casa, e foi nesse dia que essa pessoa que usava drogas no local abusou da garota. Nesses mais de 11 anos de processo, seria muito fácil esquecer detalhes, mas ela lembrava de tudo daquele dia e admitiu que fez porque viu a filha sofrendo”, complementa Vagner.
O defensor Rafael Piaia foi o responsável pela sessão do júri popular. “Levamos como estratégia mostrar como esse tempo impactou de forma negativa na vida dessa família, que ficou um trauma psicológico para todos, que a criança precisou de assistência médica por muito tempo e a mãe permaneceu em profundo sofrimento, além de ser a única responsável financeira pela família de cinco filhos, enfrentando todo tipo de adversidade. Em 11 anos de processo, ela já foi punida pela vida”, lamenta. Outra estratégia essencial para provar a inocência da mãe da garota foi a composição do júri. Seis dos sete jurados eram mulheres. “A sensibilidade delas foi crucial. Elas puderam se colocar no lugar da acusada, entendendo o que é a dor de uma mãe ao ver a filha sofrer uma violência tão grave”, avalia Piaia.
No julgamento, o MPCE pediu a desclassificação para lesão corporal grave, mas a Defensoria sustentou a absolvição, considerando o longo processo, a vida de subsistência da mãe e o contexto no qual o crime ocorreu. “Punir essa mãe seria ignorar o que ela enfrentou e ainda enfrenta”, reforça Vagner Júnior.
Em março deste ano, a Defensoria levou a tese ao Tribunal do Júri sobre a sobrecarga da mulher. A defensora e supervisora das Defensorias de Família da Capital, Michele Camelo, tem estudado esta temática porque tem lidado com diversas situações de mulheres sobrecarregadas, que precisam desdobrar suas existências com os cuidados e responsabilidades – muitas vezes solo – de crianças e adolescentes. Assemelha-se ao caso em questão, quando a mulher precisou levar os filhos ao trabalho por não contar com uma rede de apoio ou políticas públicas de resguardo a essa maternidade. “Precisamos levar a perspectiva de gênero para todos os espaços. Estamos falando não só do Direito formal, mas de assuntos transversais que impactam diariamente a vida de milhares de mulheres”, defendeu.
Atuação da Defensoria é sobre o direito à ampla defesa
A atuação da Defensoria Pública na esfera criminal evidencia a importância fundamental da Defensoria Pública do Estado do Ceará (DPCE). Essa atuação é abrangente e contínua: começa nas Varas de Custódia, onde o acusado tem o primeiro contato com o sistema de justiça, e segue até às cortes superiores, sempre com o acompanhamento de defensoras e defensores públicos.
Para o titular da 3ª Defensoria de Execução Penal e subdefensor geral, Leandro Bessa, essa atuação, especialmente em casos de júris populares, simboliza o acesso pleno à defesa e ao contraditório, pilares essenciais do Estado Democrático de Direito. “Por meio de uma defesa técnica qualificada e comprometida, a Defensoria atua para evitar injustiças, assegurando que cada processo seja conduzido com respeito aos direitos dos envolvidos. No caso dessa mãe que agiu na defesa da filha, fica clara a necessidade de acolher essa mulher e fazer com que a sociedade perceba que ela também foi vítima”, pontua
Ele explica que, com o trabalho dos defensores públicos, é possível contribuir para uma justiça mais eficiente, reafirmando o papel indispensável da instituição na promoção da ampla defesa, de penas proporcionais e de julgamentos justos, sempre considerando o contexto. “Esse é o grande diferencial da Defensoria: mostrar que a realidade é diferente da letra fria da lei. Temos que perceber o contexto em que aquela pessoa está inserida e suas múltiplas vulnerabilidades”, reforça o subdefensor.
A DPCE conta com um amplo espectro de atuação na defesa criminal e penal. Essa atuação inclui Defensorias Criminais e Defensorias Criminais Especializadas, abrangendo áreas como Justiça Militar, Delitos de Tráfico de Drogas, Tribunal do Júri, Organizações Criminosas, Juizado de Violência Doméstica e Crimes Contra a Dignidade Sexual de Menores. Além disso, a DPCE atua em Juizados com competência criminal tanto na capital quanto no interior do estado.
Na Capital, a Defensoria possui ainda dois núcleos especializados: o Núcleo da Defensoria Pública Especializado em Execuções Penais (Nudep) e o Núcleo de Assistência ao Preso Provisório e às Vítimas de Violência (Nuapp) que atendem as pessoas que estão nas unidades prisionais e aos familiares de pessoas presas ou respondendo a processos criminais para dar andamento aos pedidos cabíveis, como habeas corpus, extinção de pena, progressão regime e benefícios de progressão de pena.
Um dos diferenciais da atuação da Defensoria Pública está no acompanhamento integral das pessoas acusadas de estarem envolvidas em atos ilícitos. Esse trabalho vai desde o momento inicial do processo, com assistência jurídica nas audiências de custódia ou mesmo nas delegacias, até o acompanhamento em tribunais superiores, quando necessário.
Essa abordagem completa é possível graças ao trabalho dos defensores públicos de segundo grau, que atuam junto às Câmaras Criminais do Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE) e nos Tribunais Superiores, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF). Atuação contínua e essencial para garantir que injustiças sejam corrigidas e que direitos fundamentais sejam protegidos em todas as instâncias.
“Com esse trabalho dedicado e especializado, a DPCE reafirma seu compromisso de assegurar que o direito à ampla defesa não seja apenas uma garantia formal, mas uma realidade efetiva e acessível a todos, especialmente às pessoas em situação de vulnerabilidade. A ampla defesa que menciono não se limita ao acompanhamento jurídico técnico, por mais qualificado que seja, mas envolve também uma escuta ativa, a busca por novas evidências e uma análise criteriosa do contexto social e pessoal das pessoas acusadas. É fácil olhar apenas sob a ótica dos documentos e processos, mas estamos lidando com vidas. Nesse sentido, os defensores públicos agem com o compromisso de promover uma justiça verdadeiramente humanizada, respeitando os direitos humanos e assegurando que a balança da justiça esteja, de fato, equilibrada, justa e igualitária”, frisa o subdefensor.
Essa história, parte da série Justiça para Quem Precisa, revela que, mesmo em contextos de extrema adversidade, é possível buscar e garantir justiça. Uma vitória para uma mãe, para a sociedade e para o próprio sistema jurídico.