
Moradores das praias da Placa e do Peixe Gordo, em Icapuí, apontam problemas com regularização fundiária e especulação de terras
Texto: Amanda Sobreira*
Fotos: Amanda Sobreira e Bruno de Castro
Em uma iniciativa voltada à escuta ativa das comunidades e à garantia de direitos dessas pessoas, a Defensoria Pública do Ceará (DPCE) realizou nesta terça-feira (21/1) duas rodas de conversa com os moradores da Praia da Placa e do Peixe Gordo, duas das 16 praias que formam o município de Icapuí, no litoral leste do estado.
Defensoras e defensores públicos ouviram as principais demandas dos moradores, identificando problemas relacionados à energia elétrica, saúde pública e educação, além de questões ambientais que impactam diretamente as regiões, conhecidas pelas belezas naturais e forte aptidão para a pesca e aquicultura. Mas o principal desafio diz respeito a processos de regularização fundiária, que têm trazido insegurança e medo aos nativos, especialmente os mais antigos, como dona Chaguinha, de 71 anos, proprietária de uma barraca na Praia da Placa.
“A gente lida com a falta de transporte escolar para as crianças, a agente de saúde não dá conta de atender toda nossa comunidade, a gente não tem infraestrutura básica e a minha energia dá mais de mil reais por mês. E ainda temos que lidar com empresários, pessoas maldosas que se dizem dona do nosso território, que dizem que a nossa comunidade não existe. Existe e nós vamos resistir. Por isso é importante a vinda da Defensoria Pública para dar voz à nossa comunidade. Alguém precisava vir aqui para nos defender”, disse a pescadora.
Já outros moradores relatam que a Praia da Placa até pouco tempo nem aparecia no mapa, mas a disputa por terras na região já ultrapassa os 20 anos. Em junho de 2024, moradores foram surpreendidos, após uma empresa de carcinicultura cercar, de forma irregular, uma Área de Proteção Ambiental (APA), impedindo o acesso ao mangue e isolando o território.
De forma organizada, as comunidades tradicionais da praia movimentaram as redes sociais e chamaram a atenção dos órgãos públicos. Só após a repercussão do caso, o Instituto Municipal de Fiscalização e Licenciamento Ambiental (Imfla), órgão da Prefeitura de Icapuí, retirou a cerca – situação essa que é apenas uma das que constam em processo em tramitação desde 2019 na 1a Câmara Civel de Aracati.
De acordo com os autos da ação judicial, o autor, o empresário que cercou a APA, alega ter o registro da terra, resultado de uma antiga causa de usucapião, que corresponde a toda a Praia da Placa, incluindo o manguezal da Barra Grande e os terrenos das casas dos moradores.
Como principal encaminhamento da reunião, a DPCE irá se habilitar no processo para defender a comunidade e questionar a origem do registro da terra, obtido pelo empresário. “A partir da provocação da comunidade, nós iremos nos habilitar no processo e defender o direito coletivo que está em jogo, que diz respeito ao direito à moradia digna e a pesca artesanal”, destacou a defensora pública Iliada Karnak Dantas Alves Clemente, que atua em Aracati.
A marisqueira Gabriela Rebouças destacou a importância do diálogo e da presença da Defensoria na praia. “Depois de ouvir todas as defensoras, eu me sinto finalmente representada. A gente estava abandonado. É a primeira vez que temos a chance de falar diretamente com representantes da Defensoria. Muitas vezes, nossas vozes não são ouvidas. Eventos como este nos dão esperança de que algo pode mudar”.
PEIXE GORDO
Na comunidade do Peixe Gordo, a roda de conversa reuniu representantes de diversas localidades em torno de um mesmo tema: a necessidade de diversas famílias obterem, enfim, o sonhado “papel da casa”. Muitas vivem, inclusive, em ocupações. Como cada caso requer uma análise minuciosa das evidências e documentos, todas foram orientadas a buscar a carreta da DPCE, que faz atendimentos na cidade até esta quinta-feira (23/1).
Desde que começou a funcionar, nesta terça-feira (21/1), o caminhão tem recebido diversos casos de usucapião. A situação é tão séria que o prefeito de Icapuí, Kleiton Pereira, fez questão de participar da roda de conversa na praia do Peixe Gordo e revelou: “isso já terminou em morte aqui. É uma questão muito grave e que mexe com a vida de muita gente”. Esse e outros cenários fizeram o gestor solicitar a reabertura de um núcleo da DPCE no município.
Por conta da reestruturação do Judiciário, a cidade passou a ser vinculada ao Aracati, distante 50 quilômetros. “A Defensoria tem total interesse de ampliar ainda mais a interiorização dos trabalhos e retornar a Icapuí. Se a Prefeitura for nossa parceira, podemos sim retomar esses atendimentos e garantir os direitos de cada vez mais gente dessa região, que deve estar com uma demanda acumulada de alguns anos”, afirmou a defensora geral Sâmia Farias.
AMAR DEFENSORIA
As rodas de conversa e os atendimentos jurídicos na carreta refletem a importância do Amar Defensoria – Um Mar de Direitos. Desde que foi implantado, em 2024, o projeto registrou mais de 340 atendimentos em sete edições (Paracuru, Itapipoca, Flecheiras, Itarema, Acaraú, Beberibe e Aracati). “Nosso papel é estar ao lado da população, especialmente daqueles que têm direitos negligenciados. Este espaço é para ouvir, entender as necessidades e buscar soluções junto às instituições responsáveis para garantir direitos às comunidades do nosso litoral”, afirmou Sâmia Farias.
A ouvidora externa da Defensoria, Joyce Ramos, ressaltou a importância de as comunidades estarem unidas e ativas nas decisões que envolvem direitos coletivos. “Se vocês, que são os verdadeiros donos do território, continuarem mobilizados e atentos ao que está acontecendo e, principalmente, nos informando sobre os acontecimentos, tenho certeza de que a Defensoria do Estado, em parceria com a Defensoria da União, o Idace e outros parceiros, irão atuar firmemente na defesa dos direitos de vocês”.
A reunião contou ainda com a presença da supervisora do Núcleo de Habitação e Moradia (Nuham/DPCE), defensora pública Elizabeth Chagas; da coordenadora de projetos da instituição, defensora pública Camila Vieira; da Assessora de relacionamento Institucional da DPCE, defensora Lia Felismino; além do defensor público da União Edilson Santana, do ex-deputado e ex-prefeito de Icapuí, Dedé Teixeira; de representes do Idace, da Secretaria de Direitos Humanos do Ceará, da Secretaria de Meio Ambiente de Icapuí, da Associação de Moradores, pescadores e marisqueiras da região.
* Colaborou: Bruno de Castro