Mutirão Abraçar garante o direito de famílias formadas pela dor e pelo afeto
TEXTO: DEBORAH DUARTE
FOTO: KAMILLA VASCONCELOS
Em 2015, Luciano Félix Gonzaga vivia no Rio de Janeiro quando conheceu Renata pela internet. O que começou como uma troca de mensagens se transformou em uma história de amor que atravessou estados. No ano seguinte, ele deixou tudo para trás e se mudou para Fortaleza. “Eu vim de vez pra cá e já constituí família com ela. Eu sabia que ela tinha três filhos, mas pra mim nunca foi obstáculo. A gente era uma família, com dificuldade como toda família, mas sempre unidos”, lembra.
As crianças, que na época tinham dois, cinco e sete anos, começaram chamando Luciano de “tio Lu”, mas o carinho logo se transformou em laço. “Naturalmente começaram a me chamar de pai. Eu sempre estive presente em tudo: educação, lazer, médicos, escola. A gente fazia tudo junto”, conta, emocionado.
O casal planejava oficializar o casamento em agosto de 2022, após o adiamento dos planos por conta da pandemia. Mas, quatro meses antes da data marcada, Renata adoeceu. Foram meses de exames e diagnósticos equivocados, até que um médico descobriu que uma espinha de peixe havia perfurado o intestino dela. “Quando ela foi pra cirurgia, disseram que ia dar tudo certo. Só que horas depois me ligaram do hospital… e minha vida desabou. Ela não resistiu.”
Luciano ficou sozinho com as três crianças, filhas de Renata . “A família dela me perguntava o que eu ia fazer, se ia abandonar, se ia voltar pro Rio. Mas eu sempre soube que meu lugar era com eles. Eu não conseguiria olhar pra trás e deixar pra trás os meus filhos.”
Desde então, a rotina de Luciano se transformou em luta diária. Trabalhando como porteiro, ele encontrou nas responsabilidades com os filhos o sentido para seguir em frente. “Foi muito difícil. Eu me vi sozinho, com três crianças, tentando dar conta de tudo. Até que uma professora lá do trabalho me falou da Defensoria Pública, do programa que poderia me ajudar a me tornar, oficialmente, pai deles.”
A partir dessa indicação, Luciano procurou o Mutirão Abraçar, iniciativa da Defensoria Pública do Estado do Ceará (DPCE) em parceria com a Articulação em Apoio à Orfandade de Crianças e Adolescentes por Covid-19 (AOCA). O programa tem o objetivo de regularizar a guarda de crianças e adolescentes que perderam seus responsáveis legais e hoje são criados por familiares, amigos ou pessoas com quem desenvolveram vínculos afetivos.
“Eu sou pai de coração há muito tempo. Mas agora quero me tornar pai também de direito. Isso muda tudo, porque garante a eles segurança, direitos, pertencimento. E me dá forças pra continuar. Deus me colocou nesse caminho, e a Defensoria vai me ajudar a seguir nele com dignidade”, diz Luciano, com a voz embargada.
Enquanto aguarda a conclusão do processo, Luciano olha para a foto dos filhos com a certeza de que fez a escolha certa. “O mais velho vai fazer 18 anos, os outros têm 15 e 12. A gente segue junto, como sempre foi. Eles são minha vida. E hoje eu posso bater no peito e dizer, com orgulho: eu sou o pai deles.”
A edição do Mutirão Abraçar que atendeu Luciano aconteceu entre os dias 21 a 23 de outubro, no Núcleo de Atendimento da Infância e da Juventude (Nadij), no bairro Jardim das Oliveiras, em Fortaleza. Ao todo, 57 famílias previamente inscritas participam dos atendimentos, que incluem escuta psicossocial, análise documental e início das ações judiciais para formalizar a guarda.
Maria Sherley Gomes de Souza, que buscou atendimento para regularizar a guarda da sobrinha, que há três anos mora com ela. “O pai dela faleceu quando ela era ainda bebê, e a minha irmã, que é a mãe dela, morreu há três anos, mas eu não sabia que precisava regularizar isso até não conseguir fazer a carteirinha do transporte público, porque ela estuda em Maranguape e têm direito a gratuidade. Mas como eu não tenho a guarda, não conseguimos fazer”, conta.
Outro problema que a sobrinha teve foi com relação à inscrição no Programa Pé de Meia. “Também precisou da guarda, aí eu tinha que resolver, porque daqui pra frente, com certeza, vai precisar de outras coisas. Pra mim tudo isso também é muito novo e espero que dê certo”, complementa.
A supervisora do Nadij, Noêmia Landim, explica que o mutirão é uma resposta concreta às novas configurações familiares e à necessidade de assegurar que nenhuma criança ou adolescente fique sem amparo jurídico após a perda de seus responsáveis.
“Muitas dessas crianças e adolescentes estão sendo criadas por pessoas que assumiram o cuidado por amor, e isso precisa ser reconhecido legalmente. Aqui, cada atendimento é uma escuta sensível, um olhar atento à história de vida dessas famílias. Formalizar a guarda é garantir estabilidade, acesso a direitos e, principalmente, o direito à convivência familiar e comunitária”, reforça Noêmia.
Desde sua criação, o programa já beneficiou mais de 90 famílias, assegurando o direito à convivência familiar e o acesso a políticas públicas voltadas ao desenvolvimento infantil e juvenil.

Para a professora Ângela Pinheiro, professora da Universidade Federal do Ceará (UFC), integrante do Núcleo Cearense de Estudos e Pesquisa sobre a Criança e representante da Aoca, que atua desde 2021, o mutirão tem se mostrado um importante instrumento de mobilização social. “É fundamental chamar atenção para as consequências da orfandade na vida de uma criança. Essa iniciativa é decisiva na busca pela garantia de direitos e pela proteção integral”, destaca.
