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“Nossa causa de vida vai além de qualquer deficiência”

“Nossa causa de vida vai além de qualquer deficiência”

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Na recepção do Laços de Família, a poucos passos do Arco de Triunfo da cidade de Sobral (CE), Eduarda Albuquerque, 23 anos, recepciona o público que bate às portas em busca de acolhimento e escuta profissional na Defensoria. Com o apoio de seu fiel escudeiro, o Etevaldo, exerce seu trabalho com muita competência e sensibilidade, garantindo o acesso a direitos básicos, especialmente para os seus iguais. Duda, como prefere ser chamada, é uma mulher com deficiência visual. O lugar que ocupa hoje veio através de uma luta por inclusão iniciada ainda na infância. 

Para entender a visão de Duda, antes faça um exercício de pensamento: primeiro, cubra seus olhos e imagine enxergar um mundo quase sem cores e distorcido, onde o meio dele é coberto por uma mancha igual a um globo espelhado, capaz de crescer e cobrir tudo que há à sua frente. É assim que a jovem sobralense explica a doença de Stargardt, um distúrbio adquirido ainda ao nascer por causa genética. A doença atinge progressivamente o campo de visão central dos dois olhos, afetando sua capacidade de ler, contar, andar e perceber cores e captar rostos, logo quando Duda estava no processo de alfabetização.

“A Stargardt apareceu na minha vida aos 10 anos. Era justamente a época que estava me alfabetizando e entrei para uma escola mais avançada. Eu era muito estudiosa, adorava ler, participava de clubes de leitura e concorria a competições na escola. Tudo começou quando os professores foram avaliar a minha equipe de leitura e perceberam que estava me escondendo atrás dos coleguinhas, como se eu não quisesse mais ler. Só que eu mesma não entendia o que estava fazendo e nem sabia explicar para as pessoas o que estava acontecendo comigo. Demorei muito para entender que eu não estava conseguindo ler por não enxergar as letras”, relata. 

Sem poder fazer o que mais gostava, a jovem começou a se sentir excluída dentro do que –  antes da deficiência – entendia como o seu lugar favorito. As aulas já não eram as mesmas quando não enxergava mais a lousa e saía com o caderno em branco. As palavras dos colegas foram trocadas por insultos e brincadeiras de mau gosto. As provas, com suas letras miúdas e distantes, pareciam mais difíceis. A aula de educação física era sinônimo de medo e apreensão. Brincar no recreio não era mais divertido. As memórias de antes pareciam pertencer a outra pessoa.

No desenvolver da deficiência, Duda conta que o pai chegou a pensar que a filha estava ‘tentando chamar atenção’ por não querer mais olhar nos olhos dele e os avós, preocupados, suplicavam pelo olhar da neta. “Pelo fato da doença não deixar sequelas [visíveis] no meu olho. A única sequela é quando eu estou conversando com alguém, não fico com olhar fixo nela, dando a impressão de um olhar ‘torto’, desviado, como se parece que eu estivesse mentindo, tentando esconder algo de todo mundo. Lembro muito dos meus avós dizendo assim ‘Olhe para mim, olhe para mim’, mas na minha cabeça eu estava olhando, só que na realidade, não”, conta.  

Apenas durante uma aula de redação, a professora percebeu que algo estava errado quando a aluna escrevia muito distante das linhas da caligrafia comparada aos demais colegas. O primeiro pensamento da família foi buscar um oftalmologista, que diagnosticou astigmatismo e receitou um óculos de grau. Nada resolvido. A preocupação aumentou. Foi então que a corrida por um diagnóstico começou. Fortaleza, Brasília e Goiânia. Uma jornada de mais de 2 mil quilômetros para entender o que estava se passando com  Duda. A doença, então, só foi comprovada após os 11 anos de idade, através de exames e testes genéticos que detectaram uma mutação em seus genes associados à visão. 

De volta a Sobral, a jovem precisou entender e fazer outros entenderem que precisaria de um mundo com adaptações. Andar na rua apenas acompanhada. Ir à aula com uma lupa eletrônica para ler e escrever. Nesse período, a perda gradual da autonomia e a constante dependência de terceiros a machucava. “Eu sempre fui uma criança bastante independente, como a gente diz, muito ‘atirada’. Quando a deficiência tirou muito da minha independência, foi o que mais me maltratou”, revela, ao lembrar do período.

Na foto, ao centro, a estudante Eduarda Albuquerque posando sorridente para câmera. Atrás da mulher, está vitral com logomarca do programa Laços de Família

Olhar para o mundo

Para curar um pouco da angústia pessoal, Duda nutria um sonho cada vez mais latente: ser influenciadora digital. Há época, em 2015, não existiam referências PcDs na internet.  E ainda mais raro quando se falava em conteúdos sobre beleza e maquiagem – um mundo tão distante para aqueles corpos que não obedeciam ao senso comum ou socialmente aceito. Mesmo assim decidiu: uma mulher cega daria esse primeiro passo. Duda faria com que esse mundo fosse seu e de outras iguais também, custe o que custar. Se não fosse para mudar o mundo, desejaria apenas mudar o seu bairro. Por que não?

Aos 15 anos, começou a gravar seus vídeos e a postar publicamente em seu canal do Youtube. No começo, com medo do julgamento, não falou sobre a deficiência. Mas a família a incentivou a contar. A decisão, então, a permitiu enfrentar o preconceito de frente e a aceitar quem era e que poderia, sim, existir e ocupar o mundo. “As pessoas já notavam a minha deficiência. Deixavam vários comentários nos vídeos, como ‘Ah por que ela não olha para a câmera?’, ‘Ai que gastura!’, ‘Que estranha!’. Isso me chateou muito, mas preferia não dizer nada por achar que as pessoas não iam dar moral para mim. Pensei em apagar os vídeos, porque achava que isso não era para mim. Foi então que os meus pais disseram ‘Duda, por que você não fala sobre a deficiência?’. Com apoio deles, resolvi falar sobre ela e enfrentar o que viria depois”, conta Duda. 

Com quase mil visualizações, o vídeo “A história do meu problema de visão” foi publicado em julho de 2017 e até hoje está entre os mais acessados do canal. Nos comentários, muitas mensagens de apoio e de identificação. Ao falar sobre si e suas limitações, Duda entendeu que sua voz poderia ajudar outras pessoas que se identificavam com ela. Ao aumento da popularidade na internet, criou o projeto Eficientes Visuais, voltado para acolher, compartilhar experiências, educar, visibilizar e empoderar outras pessoas com deficiência visual. Na parte da beleza, promove, desde então, mentorias e cursos de automaquiagem para mulheres com deficiência visual, elevando a autoestima de outras dezenas de “Dudas” ao longo do caminho.

Cada vez mais segura de si, a jovem decidiu concluir os estudos e concorrer ao vestibular de Serviço Social no Centro Universitário Inta (UNINTA) em Sobral. O curso não poderia fazer mais sentido aos seus propósitos, mesmo que a família a pedisse para sonhar mais baixo. “Meus pais diziam que eu não precisava fazer faculdade, mas eu queria e estava disposta a tentar. Escolhi Serviço Social porque era a área mais próxima dos meus sonhos de adolescência. Uma assistente social luta pelas garantias da sociedade. Eu queria ser essa pessoa para ajudar pessoas iguais a mim a se aceitarem, a terem direitos”, afirma. 

Logo, Duda se tornou a primeira pessoa com deficiência a cursar Serviço Social e a segunda a concluir a graduação em toda a história da faculdade. Durante o percurso acadêmico, conta que se sentiu muito incluída e pertencente ao lugar, um alívio em comparação a falta de acessibilidade vivida no período escolar. Foi bolsista, participou de estágio remunerado, deu palestras, teve as maiores notas, evoluiu pessoalmente e gerou uma revolução em cada espaço que adentrou. 

Exemplo de dedicação dentro e fora da Uninta, Duda chamou atenção da professora Maria Cláudia dos Santos Costa, coordenadora do programa “Laços de Família: Conhecer para amar”, projeto da Defensoria Pública do Ceará (DPCE) que auxilia a comunidade sobralense na solução de conflitos familiares de forma extrajudicial com mediações para conciliação.

A jovem começou a atuar no projeto, primeiro, como recepcionista. Ocupar aquele lugar já era simbólico, visto que era a primeira pessoa com deficiência a estar ali. “No início, quando fui falando a questão da deficiência para as pessoas, era novo para todo mundo, mas foi um aprendizado mútuo, uma construção muito bacana. Quando precisava de ajuda, eu dizia ‘Ei, me empresta aí os seus olhos’ ou os colegas falavam ‘Me ajuda a te ajudar’. Eu sentia o interesse da equipe para ajudar e me fazer sentir parte dela”, ressalta Duda.

Logo, surgiu uma vaga para trabalhar dentro do corpo administrativo do setor psicossocial do programa. A oportunidade veio em boa hora para Duda. De trabalho apenas manuais a responsabilidade de atender e ouvir as demandas de cada assistido, a jovem foi ganhando mais vez e voz no projeto. Apesar da oportunidade e da grande receptividade da equipe, faltava apenas um computador  adequado; algo que pudesse dizer ‘é meu por direito’.  

Recentemente, através do auxílio de Andreya Arruda, supervisora do núcleo de psicossocial da Defensoria em Fortaleza, ganhou um novo companheiro de trabalho: o Etevaldo. Duda explica que o nome único era uma forma de ‘se apegar’ à máquina, mas também de delimitar seu espaço e proclamar sua existência como PcD. Com as ferramentas instaladas no equipamento, a assistente pode fazer ainda mais, executar tarefas antes difíceis, como criar planilhas e arquivar e buscar documentos, e aprender mais, muito mais. A acessibilidade tecnológica lhe entregou mais uma dose de autonomia, e mais uma forma de dizer que pode pertencer àquele lugar. 

A foto mostra Duda, sentada e vestida com uniforme de trabalho, usando diretamente o Etevaldo, um computador de mesa adaptado à sua deficiência visual, que acabou se tornando seu colega e fiel escudeiro

“Pode parecer besta dar um nome para um computador, como se eu quisesse possuir ele, mas não é isso. As pessoas têm muito essa visão de vítima sobre  nós, de que somos muito infelizes e distantes. Eu tenho a sorte de trabalhar com uma equipe muito animada e descontraída, em que eu posso colocar o nome no meu computador e todo mundo respeitar a decisão. As pessoas pensam muito que a nossa causa de vida, a nossa única questão é a deficiência. Nós também temos conflitos, questões a serem resolvidas. Enquanto eu estiver aqui, quero tornar o Laços um espaço de referência, onde as pessoas com deficiência sejam atraídas e tenham a segurança de que o espaço é acessível para recebê-las”, declara Duda.

Nesse verdadeiro abraçar da causa, a jovem sobralense acredita que mais espaços podem ser transformados e mais políticas públicas podem sugir para dar às pessoas com deficiência os direitos que sempre foram seus. Resistente a um passado de traumas que tentou lhe aprisionar na insegurança e no pessimismo, Duda não teme o progresso da doença – ainda sem cura. Com os sonhos que têm e os que ainda podem existir, quer cimentar um futuro de esperanças para ela e tantas iguais que encontrou no caminho, seja através do realçar da beleza, do ativismo digital e da promoção e garantia dos direitos humanos.

Campanha Nacional

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), existem cerca de 46 milhões de brasileiros com deficiência, convivendo diariamente com a falta de acessibilidade, que cria obstáculos para consumir, vestir, trabalhar e ser quem sonham – quase como se não existissem no país. 

Em maio, Defensorias Públicas de todos os estados do país se unem a causa da inclusão e o anticapacitismo através da Campanha Nacional “Defensoria Pública: em ação pela inclusão”. A campanha é uma iniciativa da Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos (ANADEP) e tem por objetivo ressaltar a atuação das defensoras e dos defensores públicos na garantia dos direitos das pessoas com deficiência.

A Campanha tem também apoio das Associações Estaduais e do DF, das Defensorias Públicas Estaduais e do Conselho Nacional das Defensoras e Defensores Públicos-Gerais (Condege).

A história da jovem Duda, primeira mulher com deficiência visual a integrar o corpo de colaboradores de um projeto da DPCE, é um dos muitos conteúdos que a instituição divulgará ao longo da semana. Fiquem atentes ao nosso site oficial (www.defensoria.ce.def.br) e ao nosso instagram @defensoriaceara. Os conteúdos são adaptados e possuem recursos de acessibilidade para permitir o acesso de todes.