O corpo que adoece: racismo ambiental e o debate da saúde pública
texto: juliana bomfim
arte: diogo braga
Desde que ouviu os primeiros rumores sobre a instalação da maior usina de urânio do Brasil na cidade de Santa Quitéria, Madalena Barbosa da Prata tem acompanhado as discussões com um interesse específico: qual será o trajeto para levar a carga até o Terminal Portuário do Pecém (CE). O temor é que a linha ferroviária prevista no projeto corte o território das Comunidades Remanescentes dos Quilombos de Boqueirãozinho e Boqueirão do Arara, no município de Caucaia, onde vivem 132 famílias.
A preocupação de Madalena não é sem propósito. Como presidente da Associação dos Remanescentes de Quilombo da Comunidade Povoado Boqueirão do Arara, ela tem lutado para minorar os impactos gerados pela pedreira, em plena operação, ao lado do território. Para além do incômodo sonoro e da vibração que parece perfurar o chão de casa, as rochas soltam um pó fino que é levado pelo vento para dentro da comunidade. “Muitas crianças têm problemas respiratórios. E adultos também. Meu sogro, por exemplo, morreu devido a complicações respiratórias”, afirma.
A poeira também encobre as plantações, polui a água e prejudica os animais. “A água ficou escassa, está cinzenta e não dá para os bichos beberem. As plantações não brotam como antigamente e não temos mais a mesma qualidade na colheita que os nossos pais e avós”, relata. Ela também luta pela instalação de um posto de saúde na comunidade.
Não é por acaso que a nuvem de poeira cubra, exatamente, a comunidade quilombola que, de acordo com registros, já ocupava aquele território em 1854. O que os 366 moradores remanescentes de quilombos enfrentam, há anos, tem nome: racismo ambiental e se refere à forma desproporcional que problemas ambientais atingem pessoas negras, povos originários e a população de regiões periféricas.
Segundo a geógrafa, professora e pesquisadora do tema, Dandara Albuquerque, é graças à resistência de pessoas como a Madalena que o tema tem virado pauta em diversos setores da sociedade. “Diria que os povos indígenas, quilombolas e todas as populações periféricas são os principais porta-vozes na denúncia do racismo ambiental, pois são os mais atingidos por esse problema. Hoje, no Ceará, contamos com uma Secretaria dos Povos Indígenas, além de outros órgãos menores que incluem a questão ambiental em suas agendas. Os movimentos sociais têm uma importância enorme na reivindicação de direitos e garantias relacionadas à saúde, qualidade de vida, saneamento ambiental e proteção das terras ameaçadas. Se temos avanços nesse debate, é graças aos povos originários e tradicionais do nosso estado e do nosso país”, destaca.
Ela relembra que a educação precisa avançar e o assunto tornar ordem do dia para que as políticas alcancem tempos de mudança. “Enquanto educadora sinto que o primeiro passo de formação tem sido dado nos últimos anos, a compreensão dessa problemática tem levado uma parcela da população a se atentar sobre a responsabilidade que cada um tem perante isso. Porém, isso é partir do particular, quando vamos ao geral, especialmente partindo do poder público, essa questão se torna mais peculiar, afinal de nada adianta uma população consciente se o Estado não faz sua parte. Um ótimo exemplo disso são as políticas de infraestrutura urbana, que só podem ser exercidas mediante aprovação em casas parlamentares”, pondera.
Para a pesquisadora Ana Cláudia de Araújo Teixeira, que tem especialidade em saúde pública e atua na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz Ceará), o modelo capitalista de concentração de renda empurra para as pessoas negras e periféricas a maior carga dos danos ambientais. “Em verdade, essas populações não são vulneráveis, mas sim vulnerabilizadas por um modelo de desenvolvimento concentrador e excludente”, pontua. “São comunidades afetadas com contaminação da água, do solo e do ar que têm buscado ajuda de entidades e movimentos sociais para monitorar e enfrentar os impactos socioambientais, os riscos e os danos à saúde, no que temos denominado de Vigilância Popular em Saúde”, explica.
O racismo ambiental também aparece na desigualdade de recursos e investimentos públicos. Enquanto áreas mais privilegiadas contam com infraestrutura e serviços de saúde eficientes, muitas comunidades lutam por direitos básicos. O Censo 2022 aponta que as pessoas de cor ou raça amarela, seguidas das de cor ou raça branca, tiveram as maiores proporções de conexão de redes de serviços de saneamento básico e maior índice de presença de instalações sanitárias nos domicílios. As pessoas de cor ou raça preta, parda e indígena obtiveram proporções menores. Segundo os dados, em todos os 20 municípios brasileiros mais populosos, a população de cor ou raça branca têm mais acesso a abastecimento de água, esgotamento sanitário e coleta de lixo do que a população de cor ou raça preta, parda e indígena.
Nestes dados, salienta-se ainda que o número de casas no País onde não existem banheiros, sanitários ou buracos para dejeções foi de 367 mil. Nessas moradias residiam 1,2 milhão de pessoas, equivalente a 0,6% da população. Piaui (5,0%), Acre (3,8%) e Maranhão (3,8%) foram as unidades da federação com as taxas mais elevadas.
Quem respira o ar contaminado?
No Ceará, 79% dos casos de arboviroses identificadas em 2025 atingiram a população negra. De acordo com a professora Lígia Kerr, do Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública da Universidade Federal do Ceará (UFC), populações em situação de vulnerabilidade socioambiental enfrentam um ciclo de doenças agravadas por condições precárias de infraestrutura, falta de saneamento básico e exposição a riscos climáticos. “O acesso limitado à água potável, ao saneamento básico e à coleta de lixo deixa essas populações mais vulneráveis a doenças infecciosas, como diarreias, arboviroses (dengue, chikungunya, zika), leptospirose, entre outras. Além disso, elas ficam mais expostas à poluição do ar, causada por queimadas e emissões industriais, e ao contato com resíduos tóxicos em comunidades próximas a lixões ou áreas de uso de químicos, como os agrotóxicos na agricultura. Essas exposições, seja pela manipulação, pulverização aérea ou água contaminada, podem levar a intoxicações agudas, além de aumentar o risco de câncer e outras doenças relacionadas a esses agentes tóxicos”, explica.
Na Defensoria Pública do Ceará (DPCE), essas famílias encontram atendimento para buscar medicamentos e terapias, ajudando a restabelecer a saúde, além de orientações sobre direitos, em ações individuais e coletivas no Núcleo de Defesa da Saúde (Nudesa), que tem sede em Fortaleza e em Juazeiro atendendo o Cariri.
A defensora pública Karinne Matos, supervisora do Núcleo de Defesa da Saúde da Defensoria (Nudesa), em Fortaleza, destaca que, embora o Núcleo ainda não disponha de dados raciais específicos sobre o perfil dos atendimentos, a territorialidade já aponta uma relação evidente entre racismo ambiental e a ausência de políticas públicas eficazes em saúde. Os bairros com maior número de demandas coincidem com os de mais baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de Fortaleza, revelando uma sobreposição entre vulnerabilidade social e deficiência estrutural na oferta de serviços.
De acordo com dados do Nudesa, foram registradas 1.654 solicitações, em 2025, originadas de bairros com os menores IDH da capital: Jangurussu (109º), Passaré (94º), Bom Jardim (102º), Mondubim (92º), Bonsucesso (85º), Jardim das Oliveiras (82º), Messejana (45º), Barra do Ceará (99º), Barroso (105º), Quintino Cunha (97º) e Conjunto Palmeiras (117º). Em contraste, os bairros com maiores IDHs da capital somaram apenas 42 demandas ao Núcleo.
A maioria dos assistidos é composta por mulheres (56%) buscando ajuda para pacientes com idade acima de 60 anos, em busca de acesso a consultas, exames e outros procedimentos de saúde, o que evidencia tanto o agravamento de quadros clínicos quanto a insuficiência dos serviços básicos nas unidades de atenção primária, como postos de saúde e UPAs.
Evidenciar esses dados e trazer luz a essas desigualdades amplifica a compreensão sobre como o racismo ambiental se manifesta no acesso à saúde. Para Karinne Matos, o maior desafio ainda é conseguir relacionar essas questões que são mascaradas pelas dinâmicas sociais e institucionais. “A Defensoria realiza campanhas e ações educativas para conscientizar a população sobre seus direitos e os caminhos legais para buscar proteção. Conhecer seus direitos é uma das principais armas para que essas pessoas possam se proteger e recorrer, quando necessário”, afirma.
