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“O letramento racial precisa ser oferecido para todos os membros do sistema de justiça e servidores”, diz juíza em formação continuada da ESDP

“O letramento racial precisa ser oferecido para todos os membros do sistema de justiça e servidores”, diz juíza em formação continuada da ESDP

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A mesa virtual “Direitos humanos, raça e acesso à Justiça”, promovida na última sexta-feira (2/10) pela Escola Superior da Defensoria Pública (ESDP), expôs a dificuldade que negras e negros têm ao acessar os serviços públicos, incluindo o sistema de justiça brasileiro. O debate integra a formação continuada sobre racismo, iniciada em agosto e que ainda terá outras duas edições até o fim deste ano.

“Esse momento é parte de a gente se capacitar e se perceber como agentes transformadores diante dos contextos de atuação do defensor. Essa predisposição para questionar a própria atitude é fundamental. Que a gente não perca a capacidade de se indignar. A Defensoria ainda tem muito a aprender. E nós estamos querendo construir esse caminho”, sintetizou a diretora da ESDP, defensora Patrícia Sá Leitão.

O promotor de Justiça da Bahia, Saulo Mattos pontuou que o debate público sobre racismo não deve ser restrito à população negra. Fazer isso, segundo ele, é “responsabilizar” pessoas negras como autoras de uma resposta que precisa ser dada a uma hierarquização de sujeitos criada por outra etnia. “Se teve alguém na história que conseguiu se desenvolver a partir de determinada localização de benefícios, esse alguém foi a branquitude. Nós temos um Sistema de Justiça que prega uma universalidade, mas esse ideal de universalização dos direitos fundamentais não tem chegado à população negra.”

Ele criticou o fato de muitas instituições implementarem a política de cotas, amparada por lei, e outras ações afirmativas não serem adotadas para promoção da igualdade racial em ambientes institucionais. Como exemplo, citou o último concurso público do MPBA, em 2018, no qual apenas uma mulher negra foi aprovada.

O promotor enalteceu o papel das defensorias públicas na garantia de acesso das populações mais vulneráveis à Justiça. “A Defensoria é o principal acesso. O MP tem alguns mecanismos, mas ainda é muito encastelado. Além disso, todo mundo quer falar agora sobre questão racial. Falar de preto agora, das negritudes possíveis, dá um gozo sistêmico. É quase uma satisfação de que agora somos democráticos racialmente. Mas nós vivemos num apartheid social racial. E isso também significa apartheid institucional. Uma instituição sem pluridiversidade racial não está apta para lutar por direitos”, pontuou Saulo Mattos.

Única negra na maior posse do Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE), ocorrida em 2016, quando 76 magistrados assumiram os cargos, a juíza Bruna Rodrigues pontuou que, muito embora a luta antirracista não seja uma obrigação “apenas” estatal, os membros do Sistema de Justiça cumprem papel fundamental na modificação do futuro do povo negro.

Ela defendeu a política de cotas, mas ponderou ser necessário não se restringir a isso. “Cota é o mínimo, especialmente quando mulheres negras são apenas 2% do Judiciário e isso é evidenciado em outras carreiras do Sistema de Justiça. Nós vivemos uma crise de identidade. Não temos nem o mínimo de representatividade. Porque a dificuldade que o negro enfrenta não é uma questão social e econômica. É de cor. Você pode ser preto e rico, mas continua sendo preto e sofrendo racismo todos os dias. Sinto isso enquanto juíza.”

Bruna defendeu que mais corregedores, desembargadores e presidentes de tribunais sejam negros, em especial para evidenciar que representatividade não deve ser algo limitado aos juízes de primeiro grau e sim presente em todas as esferas. “Duas questões básicas precisam ser enfrentadas: a baixa representatividade nos cargos de poder e o letramento racial pra lidar com pessoas negras. Porque o negro hoje já é tachado de criminoso. A gente vê isso no dia a dia, seja nas ações que recebemos ou na atuação das demais instituições. Preciso de mais colegas negros, mas que também os que não são negros saibam da história do povo preto. O letramento racial precisa ser oferecido pra todos os membros do sistema de justiça e servidores”, frisou a juíza.

Já a defensora pública Eduarda Paz afirmou que o tema racismo vai além de opiniões pessoais, pois negros quando se reconhecem publicamente como tal também “se colocam” numa posição social inferior, já que historicamente esse é o imaginário coletivo construído sobre a etnia. “A brancura é buscada como um ideal. E isso de você, enquanto negro, se ver como raça excluída e com todos os estereótipos desfavoráveis faz com que a sua relação com o seu psíquico seja muito perniciosa. O racismo é mais uma forma de representação da desigualdade da nossa sociedade.”

Para ela, a lógica de funcionamento do Sistema de Justiça deixa intencionalmente muita gente sem possibilidade de acesso. Além disso, são recorrentes os episódios de racismo linguístico, quando indivíduos não compreendem a atuação de determinada instituição por ela valer-se de um discurso rebuscado. “Só a resistência não é suficiente. Nós temos que ir pro enfrentamento. A gente sabe onde vive a população negra e onde a população negra não está. Não dá pra ser bomzinho com sistema racista. Se for pra destruir e construir algo melhor, que seja feito”, declarou Eduarda Paz.

Oriunda do Movimento Negro, a ouvidora geral da Defensoria Pública, Antônia Araújo, lembrou que durante séculos ações afirmativas para o povo preto sequer existiram e a exclusão social era respaldada inclusive pelo Estado. Em uma das constituições brasileiras, por exemplo, indivíduos negros eram proibidos de frequentar ambientes escolares. Sem formação adequada, milhões eram explorados em empregos precarizados.

Ela criticou a lentidão na mudança das leis para o povo negro ser reparado. “Perdemos gerações inteiras num processo estagnado de acesso a nada. Na intersecção das opressões, existem pessoas que sofrem muito mais do que outras. É importante provocar os tribunais, conversar com os usuários, fazer formações pra sociedade civil…”, elencou Antônia.

Supervisora do Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas (NDHAC), a defensora pública Mariana Lobo afirmou que a ausência de representatividade tem efeito prático no acesso da população à Justiça. De acordo com ela, o povo negro olha com desconfiança para a atuação do Sistema de Justiça.

“A gente não vê o Sistema de Justiça no papel de garantidor de direitos dessas pessoas, mas de opressor. Por isso, só políticas afirmativas não vão conseguir mudar a realidade. É preciso pensar em políticas públicas para o acolhimento dessas pessoas. Temos que começar a constranger os operadores do direito e os tribunais sobre essa realidade. E nós, defensores, temos o dever de tirar da invisibilidade essa realidade. Porque é nas nossas portas que essas pessoas batem. Quando é pra garantir direitos, a cor é ignorada. Mas se é para criminalizar a cor é levada em consideração. Precisamos transformar todo o aparato de garantia de direitos. Hoje, até pra registrar um boletim de ocorrência por injúria racial se tem dificuldade porque no sistema da delegacia não consta essa tipificação”, denunciou.