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O tempo que ousamos existir: trajetórias e memórias LGBTs no Ceará

O tempo que ousamos existir: trajetórias e memórias LGBTs no Ceará

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Neste fim de semana do Dia do Orgulho LGBT, celebrado em 28 de junho, a XXIV Parada pela Diversidade Sexual do Ceará ocupa a Avenida Beira Mar, em Fortaleza, com o tema “Quem chora por nós? Visibilidade, orgulho e direito de envelhecer”. Encerrando a série especial Cidadania Colorida, esta matéria convida à reflexão sobre o envelhecimento na população LGBT, rompendo com a lógica da expectativa de vida abreviada — muitas vezes interrompida por violências ou negligência em saúde mental. O envelhecer é coletivo, com respeito, dignidade e visibilidade, e passa também por reverenciar os idosos LGBT, suas histórias e memórias, fabular o próprio passado e criar os heróis que a história não contou.

 

Texto: Bianca Felippsen
Fotos: MilLin Albuquerque

No cruzamento imaginário entre a Praça do Ferreira, em Fortaleza, e o lendário Ferros Bar, em São Paulo, erguem-se existências que desafiam o tempo. A rua, os bares e os salões eram mais que espaços de convivência — eram trincheiras, lugares onde se erguia uma cidadania que não vinha dos papéis do Estado.

Ali habitaram corpos que nunca couberam nas fronteiras da norma. Um deles carrega no colo a beleza do carnaval, das plumas, dos espelhos e dos salões. O outro, a lente afiada que fotografou gerações de mulheres que ousaram amar outras mulheres. Ambos costuram memórias de um tempo em que amar alguém do mesmo gênero era mais do que um gesto de afeto — era um ato de coragem.

Marquinhos: “Eu sou dono do meu corpo. Eu faço dele o que eu quero”

Marcos Ferreira, o Marquinhos Cabeleireiro, 67 anos, abre caminho pela rua da memória. “Eu sempre me entendi como homem gay. E, na verdade, toda essa minha certeza de vida e dúvida – na verdade dúvida – vem dessa coisa de ter vivido o meu desejo, de ter assumido o meu desejo”, dispara. “Eu sou dono do meu corpo, eu faço dele o que eu quero, seja bom ou seja mal. Eu faço o que quero, sou dono de mim. E isso é uma coisa extraordinária, do ponto de vista que vejo, já que a maioria das pessoas não sabem nem que desejam.”

Alice Oliveira, fotógrafa, 68 anos, segue ao lado. Ela sorri, segura uma xícara que guarda dos tempos do Ferros Bar — raridade de um dos poucos espaços de acolhimento de lésbicas, em São Paulo, que funcionou entre os anos 1960 e 1990. “Eu nasci e me criei até certa idade naquilo que eu chamo de ‘quadrilátero lésbico do Brasil’. O Ferros era um bar frequentado por lésbicas, conhecido até internacionalmente. Todo mundo sabia que, em São Paulo, havia esse bar onde mulheres que amam mulheres se encontravam.”

O passado desfila vestido de dignidade, de memória e de coragem. Fortaleza, com seu carnaval acolhia sob aplausos e purpurinas — “tinha o cordão da Pepsi, pras bichas pobres e o cordão da Coca, pras bichas ricas”, lembra Marquinhos — mas desde que não ameaçasse o status quo da cidade. “Os gays, os homossexuais que saíam nos blocos e maracatus, eram aplaudidos. Então, essa é a cidade: ela tinha uma receptividade desde que não colocasse em risco as estruturas familiares, né?”, atesta.

Escolheu a profissão que o abraçou, porque era assim que os gays eram aceitos, à época, e também aplaudidos: o salão de beleza. “Encontrei o salão, procurando uma forma de sobreviver, de manter a minha vida, de manter também o meu desejo. Não era refúgio, não. Era uma forma de manter também o meu desejo, porque vim de uma família pobre”, relembra. Com o salão, conquistou espaço, reconhecimento, sucesso, e, principalmente, a autonomia que exerce até hoje, vivendo em um sítio florido no Eusébio.

“Acho que alegre nós sempre seremos. Inclusive, a alegria é uma forma de resistência. Porque se tem uma coisa que eles têm ódio, é a alegria”, gargalha Marquinhos.

Marquinhos viveu o que muitos passaram/passam: sair de casa aos 15 anos para conquistar sozinho seu espaço no mundo. Morou de favor em casas de outras pessoas e só anos depois se reconciliou com o pai. A mãe, não — era uma leoa na defesa dos filhos, oito ao todo. Ele lembra do dia em que o tio foi enredar sobre sua orientação sexual e ouviu uma resposta certeira: “Se você vier na minha casa dizer que meu filho é isso ou aquilo, eu não vou ouvir nem vou admitir. Se ele trata mal as pessoas, se ele é desonesto, mal educado, aí eu vou me preocupar. Mas se vier dizer que ele é viado, isso é problema dele”, afirma.

Alice: “Cada pessoa da militância, LGBT, entendeu que tem o seu valor, tem a sua importância”

Alice também compreendeu cedo o peso das estruturas familiares e sociais na escolha de sua orientação sexual. “Eu sou filha única. Num primeiro momento eu não coloquei pra minha mãe nada. Ela virou e falou: ‘Acho que é bom você tomar uma decisão. Você quer ficar com homem ou quer ficar com mulher?’ (…) E quando eu disse que ia morar com minha companheira, ela me respondeu: ‘Sabe o que eu acho disso? Você sabe o que eu sinto sobre uma lesma? Eu tenho nojo.’”

Mas a história nunca foi feita apenas de rejeições. Foi também construída de afetos, de reconciliações possíveis e de revoluções íntimas. “Um mês depois, ela virou pra mim e falou: ‘Eu queria conhecer tua casa’. E aí começou… Minha mãe virou a melhor amiga de todos os meus amigos e amigas. Ela era a mãe que todo mundo queria ter”, recorda.

Se as famílias biológicas nem sempre acolheram, as famílias escolhidas floresceram. Nos salões de beleza, Marquinhos construiu não só um sustento, mas também um palco político. “A profissão de cabeleireiro foi a minha escola, foi a minha universidade, foi o meu aprendizado, foi o meu palanque de me colocar politicamente”, diz. O corpo foi trincheira, bandeira, alvo e também resistência. “O cidadão político foi construído a partir do meu corpo”, reflete Marcos. “A partir do momento que eu disse ‘sou assim’, eu rompi com muita coisa.”

 

Alice Oliveira: ” A moçada nova que chega agora, com sua linguagem e seus quereres, precisa reconhecer isso — não para pisar no passado, mas para entender a importância de cada existência em seu tempo certo”

Já Alice se abraçou com muitas na luta por direitos, encontrando o espelho da própria potência. “Eu fui falar sobre lésbicas no [programa] Serginho Groisman. Quinze dias depois, a produtora me liga: ‘Tem uma pessoa que quer falar contigo’. Eu liguei e, do outro lado, uma mulher chorou meia hora. Quando conseguiu falar, ela me disse: ‘Você me devolveu a vida. Eu estava pensando em como fazer o segundo suicídio sem ser socorrida, e quando te vi falando, eu entendi que eu não estava sozinha no mundo’.”

Entre Marquinhos e Alice, há muitos pontos de encontro. A crítica à normatividade é um deles. “Não acredito nesse modelo de família. Acho horrível esse negócio dos dois, o cachorro, e não sei quem. Uma coisa pavorosa”, provoca ele, entre risadas de quem escolheu a solitude – e não a solidão – em seu sítio rodeado de plantas no Eusébio.

Alice complementa: “Nós, que somos LGBTs, a nossa proposta de relacionamento é muito ousada. Então ela não pode ser, e nem ter como ter uma referência nas relações heteronormativas. Nós temos que fazer com que as nossas relações sejam totalmente originais. Eu, pelo menos, não estou aqui para reproduzir papéis das relações heteronormativas (…). Mas também entendo que nós temos, sim, que ter direitos iguais.”

Ambos testemunharam a dor da epidemia de AIDS. Enterraram amigos, viram famílias expulsarem os sobreviventes, roubar bens, apagar histórias. “Cansei de enterrar amigos no túmulo da minha família porque foram abandonados, de ver a família trocar a fechadura do apartamento enquanto a pessoa estava enterrando o companheiro”, relembra Alice. Naquela época, floresceram os movimentos sociais que hoje respaldam direitos dia após dia. “A nossa comunidade mostrou para o Brasil o que é se organizar”, disse ele. 

Eles entendem a garantia de direitos conquistada mas também acham que precisa avançar. Alice também reflete sobre os desafios para mulheres lésbicas. “Quando você vai fazer um exame ginecológico… não consta lá orientação sexual. A médica olha pra você e acha que é heterossexual, casada, com uma renca de filhos. E isso gera laudos errados, tratamentos equivocados. A gente precisa de políticas públicas que entendam quem somos.”

Alice ressalta a importância de cada militância e de cada letra que compõe a sigla LGBTQIAPN+. “Cada pessoa da militância entendeu que tem seu valor, sua importância. E isso contribui diretamente para a construção de políticas públicas. É por meio delas que conseguimos sair desse marasmo”, afirma. Ela acredita que a transformação, embora lenta, já está em curso:

“Temos muito claro que pode demorar, mas a mudança virá — e ela já está vindo. E é muito bom que venha aos poucos, porque uma casa não se constrói da noite para o dia. É preciso um bom alicerce, e o movimento funciona assim. Nós lançamos as bases para chegarmos até aqui. A moçada nova que chega agora, com sua linguagem e seus quereres, precisa reconhecer isso — não para pisar no passado, mas para entender a importância de cada existência em seu tempo certo.  E aí continuar a edificar essa construção, que é a construção do movimento, onde nós temos os nossos direitos, nós temos condições de ter uma vida saudável, nós temos condições de acabar com esses assassinatos, fazer com que todo mundo sinta, de fato, orgulho. Eu tenho orgulho”, dispara Alice Oliveira.

Apesar dos avanços, Alice destaca que ainda há muito a ser feito. “Hoje, o turismo LGBT é promissor: movimenta dinheiro, cultura e afetos. Mas as políticas públicas ainda não perceberam isso. E não dá mais para aceitar que nossos direitos estejam nas mãos de um Congresso profundamente homofóbico”, dispara.

Maquinhos: “O desejo me move. E eu digo: vivam o desejo. Se joguem, enfrentem as situações. A alegria é uma forma de resistência”

A memória de ambos carrega o sabor do que é viver intensamente. “Eu não tenho saudade do salão, não. Talvez de algum beijo na boca que eu tenha dado, de uma viagem, de uma boa comida…”, ri Marcos. “O desejo me move. E eu digo: vivam o desejo. Se joguem, enfrentem as situações. A alegria é uma forma de resistência.”

E se no passado “ninguém podia mostrar a cara”, como lembra Alice, hoje são milhares as caras, os corpos e as histórias que ocupam as ruas, as universidades, os espaços de poder e as redes. “Cada pedacinho que você vê aqui é uma pequena construção da minha vida”, diz sorrindo mostrando os objetos, cartazes, fotografias e bandeiras ao redor de seu escritório. Arremata, como quem sopra uma bênção sobre quem lê, ouve e a quem chega agora: “Se amem muito, se respeitem. Eu faço isso na minha vida, eu me amo, eu me respeito, eu me valorizo. Sendo assim, na outra linha, eu faço isso com todo mundo. O amor é lindo. Ele transforma. E ele faz coisas lindas”, encerra.