 
			‘Parecia que eu estava cometendo um crime’; Homem expõe as marcas de três décadas de apagamento na sua história
TEXTO: TARSILA SAUNDERS, ESTAGIÁRIA DE JORNALISMO SOB SUPERVISÃO
ILUSTRAÇÃO: DIOGO BRAGA 
“Aproveito o escuro
Para conhecer minha luz
Quebro barreiras! Me reconstruo
Sou a coragem de ser uma masculinidade avulsa.”
— Kamiel Santos
Aos 30 anos, Kamiel Santos finalmente conquistou algo que representava a sua afirmação na vida: a retificação do nome e gênero em documentos. Durante três décadas, viveu como se não tivesse direito a identidade. Foi com o apoio da Defensoria Pública do Ceará (DPCE), por meio do Mutirão Transforma, que ele conseguiu formalizar a mudança nos registros, saindo assim do alto número de pessoas trans e travestis que ainda não possuem a retificação dos documentos.
Poeta, professor mediador e apaixonado pela arte da escrita, Kamiel carrega em versos um retrato de jornada de autoconhecimento, aceitação e, finalmente, reconhecimento. Desde a infância, enfrentou uma sensação de desconexão, algo que se intensificou na adolescência. “Sentia que não estava no lugar certo, não pertencia ao ambiente, por isso tive problemas em fazer amizades e me desenvolver. Eu me sentia realmente um estrangeiro”, recorda. Esse sentimento de deslocamento refletia questões de identidade de gênero, que Kamiel começou a perceber ainda jovem, mas não compreendia totalmente.
Aos 21 anos, começou a entender que o que sentia estava relacionado à identidade de gênero, mas a verdadeira aceitação de si mesmo veio mais tarde. “Era como se eu estivesse vivendo algo que não fazia sentido, não conseguia me encaixar. Só depois de muito tempo pude entender que o problema estava na minha identidade de gênero”, explica.
O processo de autoconhecimento se aprofundou durante a pandemia, quando Kamiel passou a investir mais tempo em si e na terapia. “Foi como uma virada de chave: comecei a entender que não era cisgênero, e que era um homem transsexual”, conta. Nesse momento, se reconheceu.
Uma jornada que não foi apenas emocional e psicológica, mas também legal e burocrática. Aos 30 anos, Kamiel teve a oportunidade de retificar nome e gênero por meio do mutirão Transforma, projeto da DPCE que oferece apoio jurídico a pessoas trans para ajustar documentos conforme identidade de gênero. “Foram três décadas vivendo com um nome e um gênero que não correspondiam à identidade. Quando consegui retificar os documentos, foi como se finalmente o mundo me visse como realmente sou”, explica.
A retificação aconteceu em 25 de junho de 2024 e foi um marco importante na sua vida. “Era como se eu estivesse cometendo um crime de falsidade ideológica ao usar documentos que não correspondiam ao nome e gênero com os quais me identificava, sentia como se estivesse mentindo ou vivendo uma identidade falsa, apesar de sempre me apresentar pelo nome que eu sabia ser o verdadeiro”.
Hoje, Kamiel dedica tempo e energia para ajudar outras pessoas a também se reconhecerem. Enquanto professor mediador, tenta levar aos alunos trabalhos que tratam sobre autoconhecimento, para que eles não precisem passar por esse processo de negação de identidade que enfrentou. “O que eu quero é ser a coragem para quem ainda está na luta, ajudar a dar visibilidade e apoio a quem ainda enfrenta esse processo. Porque quando a gente se reconhece, o mundo parece mais leve”, finaliza.
Atuação da Defensoria
Em Fortaleza, o Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas (NDHAC) realizou 247 atendimentos para retificação de nome e gênero até novembro de 2024. O serviço assegura o reconhecimento oficial do nome e gênero, refletindo a identidade da pessoa. E o melhor: não é preciso aguardar o Mutirão Transforma para realizar a mudança. Os interessados podem procurar qualquer sede da Defensoria Pública e solicitar a retificação a qualquer momento.
Por sua vez, o Mutirão Transforma é uma iniciativa que facilita ainda mais esse processo para a comunidade trans. Desde 2018, o projeto realizou 1.965 retificações de nome e gênero, sendo 593 delas feitas durante as três edições do mutirão, o que representa 35% do total de atendimentos.
Para Mariana Lobo, supervisora do NDHAC, “a retificação de nome e gênero é essencial porque permite que os documentos reflitam quem a pessoa realmente é. Isso não é apenas um ato administrativo, mas uma garantia de direitos fundamentais: o direito à identidade, o combate ao preconceito e à discriminação, e, acima de tudo, o direito de ser reconhecido e respeitado na sua essência, na sua identidade como ser humano”, explica.
Para assessora de relacionamento institucional, defensora Lia Felismino., o impacto do mutirão vai além da burocracia: “Nosso trabalho não é só corrigir um documento, é garantir que cada pessoa trans seja vista e respeitada pelo nome e gênero que escolheu. Sabemos que esse reconhecimento é um passo fundamental para a dignidade e para a plena cidadania, e estamos aqui para facilitar esse direito, sem obstáculos, de forma simples e acessível para todos” finaliza.
SERVIÇO
NÚCLEO DE DIREITOS HUMANOS E AÇÕES COLETIVAS
Endereço: av. Senador Virgílio Távora, 2184, Dionísio Torres
Telefone(s): (85) 3194-5049
 
        
