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Porque a Justiça não pode perpetuar estereótipos machistas para negar direitos de mulheres e seus filhos

Porque a Justiça não pode perpetuar estereótipos machistas para negar direitos de mulheres e seus filhos

Publicado em
texto: bianca felippsen
arte: valdir marte

“a autora trata-se de uma mulher de quase 38 (trinta e oito) anos de idade, experiente, já tendo sido casada (atualmente, divorciada). O requerido, por sua vez, trata-se de um jovem senhor de apenas 24 anos de idade” 

“ao contrário do fato narrado, a requerente é uma pessoa descontrolada, emocionalmente desequilibrada que, com o desgaste da convivência em comum, com diversas brigas e xingamentos em comum, acabou culminando numa FALSA DENÚNCIA DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA”

“sem que houvesse qualquer relacionamento amoroso entre os litigantes, a requerente, costumeiramente, em pleno ambiente de trabalho, dirigia a seguinte frase ao requerido: ‘se você bater a meta eu vou para o motel com você”

Trechos como os destacados acima seguem sendo utilizados (e com frequência) em peças processuais que tramitam na Justiça cearense. Esses argumentos baseados em julgamentos morais e visões estereotipadas sobre o papel das mulheres na sociedade foram compilados pela Defensoria Pública do Ceará (DPCE) e escancaram como o machismo ainda se apresenta no cotidiano jurídico. 

A repetição desses padrões por todo o País evidencia um problema estrutural: o uso de teses machistas – também chamada de violência  de gênero processual – segue uma realidade, especialmente em litígios que envolvem relações familiares, pedidos de alimentos e guarda de filhos, medidas protetivas em relação à violência doméstica e, por vezes, em situações extremas como em júris por feminicídios. Insinuações sobre a “promiscuidade”, a “instabilidade emocional”, “vida libertária” ou “manipulação” seguem sendo lançadas como estratégia de desqualificação de mulheres com o objetivo de fragilizar denúncias ou impedir o acesso aos direitos.

Daí aparece um termo que vem sendo recorrentemente falado no universo do Direito, sobretudo nas peças de defesa de mulheres, feitas por defensoras e advogadas (evidentemente, quase sempre também mulheres): a perspectiva de gênero na Justiça. Em resposta, em 2022, o Conselho Nacional de Justiça instituiu o Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero (Recomendação nº 128/2022) com orientações claras para que integrantes do sistema de Justiça não reproduzam preconceitos de gênero em decisões judiciais. O documento reforça que estereótipos relacionados ao sexo, à sexualidade e aos comportamentos sociais têm sido historicamente usados para restringir a cidadania à mulheres e meninas.

“Quando pensamos sobre estereótipos de gênero, é impossível fazer uma lista exaustiva sobre o seu conteúdo. São muitos e, como dito, variam de acordo com marcadores sociais. Ajuda, entretanto, a expor alguns padrões de manifestação. Dentre outros, podemos classificar estereótipos de gênero como: (i) relacionados ao sexo; (ii) relacionados à sexualidade; (iii) relacionados a papéis e comportamentos; e (iv) estereótipos compostos”, diz a normativa.  

A naturalização desses discursos tem raízes profundas. Desde o começo dos tempos, a alegação de uso do corpo, insanidade, desequilíbrio, trabalhar fora, os cuidados dos filhos, o relacionar-se livremente ou qualquer situação podem usadas para justificar a negativa de direitos e/ou o comportamento ‘transgressor’ (leia-se violento ou negligente) de genitores e agressores. 

Um dos casos de feminicídio mais conhecidos do Brasil, em 1976, trouxe à tona a tese da “legítima defesa da honra”. Na época, Ângela Diniz foi assassinada pelo então companheiro, Raul Fernando do Amaral Street, conhecido como Doca Street. A narrativa construída pelo advogado de defesa buscava justificar o crime com base no estilo de vida da vítima: “Ela queria a vida livre, libertina, depravada, senhores jurados! Desgraçadamente, fez uma opção, fez uma escolha naquele instante, deixou os filhos, veio para o Rio de Janeiro. Eu pergunto às senhoras do Conselho, não sei se são mães, mas abandonariam três crianças, uma pequenina de quatro anos?”, diz em trecho gravado do júri. E, mesmo apesar de todas as mobilizações e lutas feministas à época, apenas em 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) vetou, de forma definitiva, o uso dessa tese nos tribunais brasileiros.

Em outra decisão histórica, o STF também fixou, em 2024, que a vida sexual ou o modo de vida de mulheres vítimas de violência não pode mais ser usada contra elas em processos judiciais. A ministra Cármen Lúcia afirmou em voto que esse tipo de argumento construía uma distinção perversa entre mulheres que merecem/não merecem sofrer violência. Segundo ela, práticas como essas não possuem respaldo legal nem constitucional. “Atribuem culpa à mulher que já teria uma vida sexual anterior ‘promíscua’, ou ao tipo de vestimenta que adotava, dizendo: ‘foi ela que quis’, ‘ela estava em um bar sozinha’, ‘ela estava com a roupa tal ou qual (…) Essas práticas, que não têm base legal nem constitucional, foram construídas em um discurso que distingue mulheres entre as que ‘merecem e não merecem’ ser estupradas”, disse em voto a ministra-relatora.

Para a advogada, professora e doutoranda em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco e assessora do Instituto Maria da Penha, Rose Marques, a discussão reforça que o Direito, para ser instrumento de justiça, precisa reconhecer inicialmente as desigualdades de gênero e rompê-las. 

É inadmissível que profissionais do Direito sejam tolerantes à violência processual contra mulheres. Quando uma mulher procura por justiça, ela precisa encontrar pessoas não só sensíveis, mas qualificadas e capazes de utilizar as ferramentas que já dispomos. O Protocolo não pode ser letra morta e seu uso precisa estar na prática ético-política da advocacia, disse. Ela enfatiza que a adoção de uma abordagem de gênero não é apenas uma questão de justiça para as mulheres, mas uma necessidade para a construção de um sistema jurídico mais equitativo e democrático”, disse Rose Marques.

A presença da violência processual contra mulheres não é um detalhe. Ela impacta diretamente a forma como o Judiciário responde às demandas por direitos das mulheres, podendo resultar em decisões injustas, omissas ou revitimizantes. A defensora pública Michele Camelo, supervisora das Defensorias de Família de Fortaleza, tem se debruçado sobre o tema com interesse de quebrar esses padrões de forma efetiva.

Membra da Comissão que está elaborando o Protocolo de atuação com perspectiva de gênero da Defensoria Pública, ela tem trabalhado em teses institucionais que trazem para o sistema de justiça ferramentas concretas para identificar, enfrentar e reparar desigualdades estruturais, estereótipos e relações de poder que atravessam os conflitos familiares, promovendo decisões mais justas e comprometidas com a igualdade substantiva.

“O Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero surgiu a partir do caso Márcia Barbosa de Sousa vs. Brasil, analisado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Márcia foi vítima de feminicídio, e, ao longo de toda a investigação e do julgamento no tribunal do júri, sua conduta pessoal foi colocada em xeque, como se ela, e não o agressor, estivesse sendo julgada. Infelizmente, esse tipo de inversão — em que a mulher vítima é submetida a questionamentos e estigmas — ainda é recorrente em nosso sistema de justiça. Esse caso evidenciou a urgência de um novo olhar e resultou na elaboração de um protocolo que orienta toda a atuação judicial, não apenas a sentença final. Ele propõe que se adote uma lente de gênero desde o início do processo, para que práticas discriminatórias e estereótipos de gênero sejam evitados”, lembra Michele Camelo.

Para ela, a Defensoria Pública também tem avançado nesse sentido. “Estamos elaborando nosso próprio protocolo de atuação com perspectiva de gênero. Isso porque entendemos que a transformação cultural necessária para alcançar a igualdade entre mulheres e homens passa, obrigatoriamente, pela mudança dentro das instituições de justiça. Incorporar a perspectiva de gênero é reconhecer que o sistema, como está, muitas vezes reproduz desigualdades — e que é nosso dever atuar para superá-las”, explica. 

A defensora conta que, nos autos de um processo recente com este teor, a Defensoria fez um pedido de emenda ao juiz da Vara para que a argumentação da defesa “permeada por juízos de valor e insinuações” fossem desconsideradas, porque elas afrontavam de forma direta a dignidade da mulher, que estava gestante. “A inserção de estereótipos com esse teor não contribui para o esclarecimento dos fatos nem para a solução do mérito da lide, servindo apenas como instrumento de humilhação e constrangimento da parte autora, pelo que requer seja determinada a emenda da contestação, com a exclusão dos trechos que contenham conteúdo ofensivo, discriminatório ou baseado em estereótipos de gênero”, disse.  

Fabiana Severi, professora da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – que trouxe o tema para o Seminário de 28 anos da Defensoria do Ceará – lembra em seu artigo “Justiça em uma perspectiva de gênero: elementos teóricos, normativos e metodológicos”, que:

“a incorporação da perspectiva de gênero no sistema de justiça exige o reconhecimento de que o Direito não é neutro, mas construído a partir de valores e práticas que historicamente marginalizaram as experiências das mulheres. Portanto, é necessário desconstruir estereótipos e promover uma interpretação jurídica que efetivamente assegure a igualdade de gênero”, escreveu Fabiana Severi.

Toda essa discussão reforça a necessidade de romper com os estigmas que ainda atravessam a atuação jurídica. Afinal, alegar ou negar direitos com base em padrões morais ou visões machistas é perpetuar a violência institucional, mais do que isso, é comprometer a própria legitimidade do sistema de justiça. A adoção de uma perspectiva de gênero na justiça não se limita apenas a uma diretriz normativa: é um imperativo para que mulheres tenham acesso equitativo aos seus direitos.