Posso ajudar?
Posso ajudar?

Site da Defensoria Pública do Estado do Ceará

conteúdo

Quando o preconceito prejudica ou impede o acesso a direitos: o anticapacitismo é uma luta de todos, todas e todes

Quando o preconceito prejudica ou impede o acesso a direitos: o anticapacitismo é uma luta de todos, todas e todes

Publicado em

“Ser inteligente é quando você vê como as coisas são e usa isso para fazer uma coisa nova.” Página 42 de “O estranho caso do cachorro morto”, livro de Mark Haddon, que narra a saga de um garoto autista atravessando uma grande cidade na Inglaterra.

Gustavo é um menino de 13 anos. Tem autismo em médio grau, não verbaliza, tem energia de sobra e precisa da assistência para muita coisa. Sentiu cedo, então, o peso do preconceito contra Pessoas com Deficiência (PcD) em um tempo recente no qual isso sequer era chamado de capacitismo. “Quando o diagnóstico foi fechado, o plano de saúde não cobria as terapias que ele precisava e a gente precisou acionar a Justiça. Essa foi a maior dificuldade. A outra foi o colégio. Se meu filho não fala, a escola tem que adaptar as tarefas. Mas não querem fazer. A gente tem dificuldade direto com isso e com local pra ele sentar. A sociabilidade até hoje é delicada porque as pessoas sempre colocam ele de lado, num canto”, sintetiza o pai, defensor público do Ceará, Weimar Montoril (foto acima).

Ele sabe que capacitismo não é só a definição de um tipo de hostilidade. Não é uma abstração. É a prática muito concreta de uma exclusão, desde o vocabulário equivocado até percepções e comportamentos excludentes do cotidiano. Capacitismo é você achar que só quem pode participar da sociedade são pessoas sem dificuldades aparentes. É você, pessoa sem deficiência, fazer questão de ter ao seu redor só quem é semelhante a você, como se o diferente fosse algo ruim.

E isso acontece mesmo tendo o Brasil mais de 17 milhões de pessoas com alguma deficiência, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Ou seja: quase 9% da população nacional é PcD, embora se insista em pensar cidades e empresas e casas e afetos como se essas pessoas inexistissem.

É aí onde mora o perigo maior do capacitismo. Ele hierarquiza pessoas (as capazes e as incapazes, os válidos e os inválidos, os bons e os aleijados etc). E, assim, arranca desses sujeitos o que lhes é mais precioso. “É como se a pessoa com deficiência não fosse mulher, negra, criança etc. Ela é só a deficiência. Não é nem pessoa com deficiência. É só a deficiência mesmo. E é a deficiência como um defeito. Como uma ausência. Nada além disso. Não reconhecem a nossa humanidade. E , assim, a gente, enquanto sociedade, nem percebe, nem se relaciona com essas pessoas. Porque muitas delas permanecem reclusas. Nem saem por já viverem o capacitismo dentro de casa. Quantos telejornais você assiste com intérprete de libras?”, provoca o filósofo Marcelo Zig (foto abaixo).

Baiano, ele tornou-se PcD já adulto. Após um acidente, é hoje cadeirante e usa as redes sociais para promover conteúdos anticapacitistas. Necessário? Sim. Afinal, ainda é comum ouvirmos “portador de deficiência”, mesmo com a expressão abolida há quase 20 anos. Ainda é popular o “se fazer de João sem braço”. Ou mesmo “fingir demência”. Mas mais que isso. É recorrente as reivindicações da população com deficiência serem reduzidas à acessibilidade quando existem problemas outros e que não se resolvem com uma rampa ou um elevador, por mais que esses sejam essenciais ao acesso e deslocamento de PcDs ou pessoas com mobilidade reduzida (grávidas, idosos, crianças, pacientes em pós-operatório etc).

 

 

“Nem nossos lares são acessíveis, por que os outros espaços haveriam de ser? A gente sempre pensa em PcD a partir de alguém e não nessa pessoa como alguém independente. A sociedade pratica inclusão segregando: cria escolas especiais, paraolimpíadas, define as unidades de condomínio que serão adaptadas, quais caixas vão atender PcDs… Essa população é sempre destacada da sociedade. Isso não é inclusão. Eu, como homem negro, entendo como outro nome: apartheid. Inclusão é quando a pessoa com deficiência tiver autonomia e oportunidade em equidade com as pessoas sem deficiência. Mas a sociedade nos diz o tempo todo que nosso problema é problema nosso e nos aprisiona no imaginário da incapacidade”, acrescenta Marcelo.

Se a maioria das pessoas que hoje são PcDs não nasceu PcD, como de fato acontece, não faz a deficiência parte da dinâmica da vida? Para o filósofo, sim. Ela foi, é e sempre será parte da experiência humana. E não precisa ser encarada como “algo a ser curado” ou mesmo como doença. Porque não é, a despeito de um mercado de trabalho que não emprega nem 1% das pessoas com deficiência do Brasil, mesmo tendo o país uma lei de cotas há mais 30 anos e criada justamente para isso. “Promover acesso não torna o ambiente inclusivo. Torna diverso. Tornar inclusivo é garantir a permanência da pessoa. O acesso não pode ser o fim. O acesso é o meio. É o caminho pelo qual a gente vai construir uma nova perspectiva, de que deficiência é potência”, frisa o filósofo.

É por isso que se propõe hoje um novo jeito de compreender a deficiência, distante do modelo médico, que reduz a existência do PcD à deficiência e, consequentemente, favorece o capacitismo, e alinhada ao que se chama de “modelo social da deficiência”. Nesse debate, oriundo da década de 1960, não se identifica mais apenas o corpo da pessoa e a discussão vai além da construção de rampas. Ele humaniza as vivências e favorece a compreensão de que essa rampa não serve só para uma cadeira de rodas e sim para uma pessoa que utiliza cadeira de rodas.

A tentativa é de reverter a sensação de “morte social” ainda hoje experienciada pelas PcDs, especialmente as negras, que são maioria entre essa população. “Historicamente, pessoas com deficiência são submetidas a uma lógica de inferioridade e de tutela porque o modelo médico enxerga a PcD como um problema específico da pessoa. O capacitismo pratica uma violência estrutural diariamente contra corpos de funcionamentos diferentes. E vê-los como incapazes mesmo. A ciência legitima esse preconceito. E não pode ser assim. Esse modelo precisa ser superado”, afirma a psicóloga Luciana Maia, que coordena na Universidade de Fortaleza (Unifor) o Laboratório de Estudos sobre Processos de Exclusão Social (Leps).

Ela cita a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, ocorrida em 2006 e da qual o Brasil é signatário, como importante marco de luta anticapacitista. Foi graças a ela que legislações começaram a avançar no país em favor de PcDs, como o direito de ter no ambiente escolar profissionais especializados em educação inclusiva e cuidadores, a partir de demandas elaboradas por PcDs. “Não dá pra pensar o mundo sem pessoas com deficiência porque o mundo tem pessoas com deficiência e essas pessoas são sujeitos de direitos. Elas não precisam mais viver escondidas em casa. Mas é preciso que os ambientes sejam favoráveis à presença delas. E isso só vai ser possível quando nós entendermos que a sociedade é diversa e é bacana exatamente por ser diversa”, sublinha Luciana Maia.

É exatamente por compreender o irmão como um sujeito de direitos – e não como um “especial” ou “coitadinho”, como muita gente ainda refere-se penosamente às PcDs – que Thabatta Pimenta (foto abaixo) ocupa espaços com o irmão, Ryan. Atualmente com 35 anos, ele nasceu com deficiência, é cadeirante e tem nela, a quem chama de “irmãe”, o principal alicerce. Os dois moram em Carnaúba dos Dantas, no sertão do Rio Grande do Norte e onde Thabatta ostenta o título de primeira vereadora trans daquele estado, que é no Brasil o que, proporcionalmente, tem mais PcDs.

 

 

Nas redes sociais, ela compartilha a rotina de desafios que enfrenta com Ryan e a própria atuação parlamentar em prol da causa anticapacitista. “Aqui, mais de 12% da população tem alguma deficiência. As mães atípicas me procuram e mesmo assim é tudo muito difícil. Mas não dá mais pra dizer que erra porque não tem informação. A informação tá aí pra todo mundo. O capacitismo existe porque não se tem mesmo um olhar pras pessoas com deficiência. A gente precisa evoluir muito mais porque a necessidade é muito maior”, avalia.

Após tantos anos de luta em prol do irmão, Thabatta encara o anticapacitismo como uma luta sistêmica, que demanda atuação em várias frentes: na educação, na saúde, na infraestrutura urbana, na assistência social, na previdência, nos afetos… “Sou uma pessoa trans que faz o que outros parlamentares deviam fazer, que é se colocar no lugar de outros. A gente vê o despreparo das casas políticas para lidar com esse assunto. Muita gente não sabe nem do que se trata quando a gente fala em capacitismo. Nós temos um longo caminho pela frente. Mas temos agora, pelo menos, um Governo Federal que ouve as demandas da gente.”

Ela alerta que a inclusão de PcDs em políticas públicas e na sociedade como um todo é algo que favorece não apenas essas pessoas, mas à população em geral. “Quando você tem um cadeirante no mesmo ambiente que crianças e adolescentes, essas crianças e adolescentes vão ter uma visão diferente de outras que não convivem. E vai ter adultos diferentes também. Nós precisamos de mais aliados nessas lutas e de mais PcDs que cheguem em espaços e modifiquem as estruturas sociais”, afirma Thabatta Pimenta.