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“Quando pessoas não reconhecem nossas mortes como alarmantes é porque não reconhecem nossa humanidade”

“Quando pessoas não reconhecem nossas mortes como alarmantes é porque não reconhecem nossa humanidade”

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A Escola Superior da Defensoria Pública (ESDP) promoveu nessa terça-feira (16/2) mais uma edição do #NaPausa, projeto de transmissões ao vivo de debates de interesse público e de educação em direitos. Membro da Assessoria de Comunicação da Defensoria, o jornalista Bruno de Castro recebeu a titular da Coordenadoria Especial de Diversidade Sexual da Prefeitura de Fortaleza, Dediane Souza, para uma conversa sobre “Os desafios da população LGBTQIA+ na atual conjuntura brasileira.”

A live aconteceu no perfil @defensoriaceara, do Instagram, e está disponível para visualização (para assistir, clique aqui). “O cenário é muito desafiador para as minorias sociológicas porque, além de enfrentarmos uma pandemia cujo legado é de morte, estamos diante de um governo que de forma sistemática e deliberada desmonta políticas públicas construídas historicamente para uma população que há até bem pouco tempo sequer tinha a existência reconhecida”, afirmou Bruno.

Dediane frisou que o começo da construção de uma política pública LGBTQIA+ em Fortaleza deu-se há 16 anos, em 2005, e amadurece desde então. Contudo, na conjuntura legislativa nacional, ela acredita que se avançou pouco na oferta de garantias constitucionais a essas populações, pois apenas duas leis foram aprovadas pelo Congresso nos últimos anos nesse sentido: a Lei Maria da Penha, ao reconhecer uniões homoafetivas, e o Estatuto da Juventude, ao englobar o direito à diversidade.

Todas as demais pautas, oriundas de intensa mobilização da sociedade civil, Dediane lembrou terem sido conquistadas por lutas nos tribunais. Demandas como o casamento civil, a retificação de prenome e o reconhecimento da LGBTfobia como crime de racismo ganharam espaço após decisões do judiciário. “Temos hoje no Congresso e no Executivo pessoas que constroem uma pauta contrária à dos direitos humanos no Brasil. A gente fala dos assassinatos de LGBTs no Brasil, mas não é o governo quem sistematiza os dados. Quando a gente discute morte, a gente discute o direito à vida. E a vida está atrelada a direitos. Mas o corpo travesti, por exemplo, é visto como um corpo que não merece viver”, afirmou Dediane.

Também pesquisadora da temática (ela cursa Mestrado em Antropologia na UFC-Unilab), a gestora defendeu que o poder público implemente políticas públicas capazes de acolher as pessoas dentro das diferenças que carregam em relação a outros grupos. “Questões referentes à população LGBT são logo colocadas no âmbito da ruptura da moral, enquanto o que a gente está discutindo é, por exemplo, a garantia do direito à educação, que é universal. Eu não quero isenção da minha conta de luz porque sou travesti.Eu quero ter o direito de trabalhar. Eu quero ter a oportunidade de disputar o mercado de trabalho. Mas eu sou descredibilizada por não ser uma mulher cis, jovens gays sofrem uma série de violências que jovens cis sofrem e nós continuamos sem olhar o outro sem empatia. Mas o que é público é de todos, inclusive dos LGBTs.”

Ela ressaltou o feito inédito de 30 pessoas trans terem sido eleitas em 2020 para o cargo de vereador/a e figuras como Erika Hilton, de São Paulo, estarem em evidência nacional pautando a causa LGBTQIA+. Erika foi a mulher mais bem votada do ano passado. Teve mais de 50 mil eleitores e identificou-se durante toda a campanha como uma travesti preta e periférica.

“Pessoas como ela fazem com que a gente caminhe para o fortalecimento de nos reconhecermos enquanto sujeitos de direitos, porque o Estado brasileiro só reconheceu a existência das pessoas trans muito recentemente, em 2018, quando ocorreu o julgamento para a retificação de prenome sem a necessidade de uma junta médica e sem decisão judicial. Antes disso, a gente precisava que um médico e um jurista reconhecessem nossa identidade para o Estado brasileiro reconhecer. Era como se eu pedisse autorização pra existir. Isso é muito simbólico, assim como é simbólico o fato de uma travesti ser morta na rua significar uma soma de vulnerabilidades dela”, frisou Dediane.

Estudos indicam que até uma travesti ser assassinada ela foi submetida a uma série de outras violências, simbólicas ou objetivas, dentro da própria família, na escola, em relações interpessoais de diversos níveis, no trabalho e pelo Estado. Em 2020, o Ceará registrou o homicídio de 22 pessoas trans. O índice é o segundo maior do Brasil, menor apenas do que o de São Paulo, e representa o dobro das ocorrências de 2019.

Estima-se que uma pessoa LGBTQIA+ seja morta no Brasil a cada 16 horas. O país é o que mais mata essa população em todo o mundo. “Os casos são subnotificados. Estamos falando de uma população que teve totalmente violado o direito à existência. E que o assassinato é sempre com requintes de crueldade. São jovens travestis negras moradoras de periferia, muitas que sequer acessaram a escolaridade básica, só tinham a prostituição como atividade profissional e são mortas porque decidiram afirmar a própria identidade. A violência contra nós é de ódio, remete à barbárie.”

A coordenadora da Prefeitura de Fortaleza enalteceu o papel da imprensa no enfrentamento aos casos de LGBTfobia e ponderou que essas mesmas empresas de comunicação muitas vezes reforçam estereótipos e preconceitos, mas que é inegável a existência hoje de mais espaço para debate sobre o tema do que se encontrava dez anos atrás.

“Dez anos atrás, era impensável uma travesti como eu publicar um artigo em jornal. Ou participar de um conselho de leitores discutindo formatos de comunicação. Mas hoje nós temos travestis produzindo notícias! Isso precisa ser reconhecido e colocado como fruto das lutas dos movimentos sociais e de ativistas tombados antes de verem isso acontecer. Muitas pessoas visionárias já integraram o movimento, mas cada bicha pintosa e cada travesti é importante pra resistência. Cada um ajuda a romper o imaginário que associam a nós. A gente disputa o direito à vida, passa pelo momento do reconhecimento das identidades e tem que disputar os acessos às políticas públicas. Quando pessoas não reconhecem nossas mortes como alarmantes é porque não reconhecem a nossa humanidade. Mas a vida de uma travesti tem tanto valor quanto a de uma pessoa cis branca”, finalizou a gestora pública.