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“Quando se perde para violência, a dor é maior”

“Quando se perde para violência, a dor é maior”

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“Falar do meu filho sempre vai ser cruel. Sempre vai machucar demais. Porque essa dor não passa. Você sobrevive. Depois que você tem um filho e perde, seja do que for, mas quando se perde para a violência, a dor é maior, porque você tem a certeza de que poderia ter sido evitada”, diz Edna Carla, mãe do Álef Souza Cavalcante.

Essa foi uma das muitas falas das mães do Curió ao revisitar a dor do julgamento dos acusados de matarem seus filhos. Pensei em me aproximar e me apresentar, solidária a sua dor. Não tive coragem.

Depois que as mães fizeram um pronunciamento para a imprensa, a vi dentro do salão do júri, cheguei perto, fiquei observando ela e as outras mães. As mãos juntas, como uma prece, às vezes tremiam, alisavam as pernas, fechavam os olhos, enxugavam as lágrimas. Dei meia volta. Eu ia falar o que pra essa mulher? Que eu era mãe e que isso poderia ter acontecido com o meu filho também?

As vítimas da Chacina do Curió, em Fortaleza, tinham características bem similares às da maioria das vítimas de violência institucional no país. Jovens da periferia integram aqueles que mais sofrem com a violência, racismo, preconceito, homofobia e pagam com a própria vida. Um estudo elaborado pela Defensoria Pública do Estado do Ceará (DPCE) revelou que a maioria das vítimas de Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLIs) — que englobam homicídios, latrocínios, lesões corporais seguidas de morte e feminicídios — em Fortaleza são homens jovens, negros e moradores de periferia.

O relatório “Em busca por Justiça – investigação dos crimes violentos em Fortaleza: um olhar da Defensoria Pública do Ceará”, da Rede Acolhe, foi divulgado em 2021.  A pesquisa apontou que dos 180 casos de Fortaleza analisados, tiveram 191 pessoas mortas e o perfil preponderante é: jovem (56%), do gênero masculino (82%), negro (80%) e morador de periferia (98%).

As mães de muitos desses jovens representam tantas outras que clamam por justiça. E a luta dela já dura oito anos.  Ao todo, 11 pessoas foram assassinadas por policiais militares, como aponta a investigação policial e a denúncia oferecida pelo Ministério Público.

De acordo com a denúncia, os crimes foram motivados por vingança pela morte do soldado Valdemberg Chaves Serpa, assassinado horas antes ao proteger a mulher em uma tentativa de assalto, no Bairro Lagoa Redonda.  Quase todas as vítimas da Chacina do Curió tinham menos de 20 anos, apenas duas com registros na polícia – uma por acidente de trânsito e outra por não pagamento de pensão.

“A minha expectativa é igual a de todas as mães. Queremos Justiça. São quase oito anos nesta batalha e acreditamos na Justiça. Isso vai acontecer e hoje está mais do que comprovado que eles [nossos filhos] foram brutalmente assassinados, naquela chacina. Sem explicação nenhuma e justificativa”, afirmou emocionada Silvia Helena Pereira, mãe de dois sobreviventes e tia de Jardel Lima dos Santos, morto na Chacina.

Silvia fez esse pronunciamento ao lado de outras mulheres na antessala do primeiro júri quando os réus foram condenados e perderam o cargo público  Eu, mais uma vez, assisti em silêncio. A boca ficou seca e fui incapaz de fazer qualquer pergunta publicamente. Só me questionava como elas estavam erguidas.

Vou continuar sem as respostas, mas com certeza a rede de direitos humanos deu-lhes os braços e encoraram a coragem de enfrentar este momento.

Hoje, dia 29 de agosto, está previsto o início do julgamento de mais oito acusados e no dia 12 de setembro, serão mais oito. Os demais réus aguardam que recursos em tribunais superiores sejam apreciados. Todos os três julgamentos agendados até o momento serão presididos pelo Colegiado de três juízes, instalado por meio de portaria pelo Tribunal de Justiça do Ceará. Nele atuarão um corpo de cinco defensores e defensoras que retratam a voz dos familiares na assistência de acusação, além da equipe de promotores e promotoras de justiça que farão acusação.

Para os órgãos que compõem a rede de apoio às famílias das vítimas da Chacina do Curió, os julgamentos são parte do processo de reparação. “Tem toda uma situação que precisa ser respondida, dar uma resposta firme do Estado para as famílias,  para que se reconheça o que aconteceu e que haja a devida responsabilização dos culpados neste que é considerada uma das maiores chacinas do Ceará”, pontuou a  defensora pública geral do Ceará, Elizabeth Chagas.

Primeiro julgamento – A primeira sessão do julgamento da Chacina do Curió acumulou mais de 60 horas de trabalho e de esperançamento das mães. Ao fim, o corpo de jurados optou por condenar os quatro réus pelo cometimento de 11 homicídios qualificados consumados, três homicídios qualificados na forma tentada, três crimes de tortura física e um de tortura mental. Foi o primeiro passo. Mas tem mais caminhada.

Crédito Déborah Duarte Pontes