“Somos comunidade para gerar outros caminhos e oportunidades”
Amanhã, 29 de janeiro, é o Dia Nacional da Visibilidade Trans e Travesti. Criada em 2004, quando um grupo com essas identidades foi a Brasília fazer reivindicações no lançamento da campanha “Travesti e Respeito”, a data é um marco histórico contra a transfobia no Brasil. Mas e antes disso? Quem iniciou a desconstrução das muralhas do preconceito contra essas populações?
No Ceará, duas travestis são sinônimo de força. Existiram, resistiram e coloriram um sonho para outras travestis e pessoas transexuais serem respeitadas de forma plena. Thina Rodrigues e Janaína Dutra são consideradas as principais ativistas e militantes dos direitos humanos da população LGBTQIAP+ local e grandes nomes no cenário nacional. Pioneiras na luta pelo direito de existir, elas dedicaram anos na empreitada contra preconceitos e discriminações.
Thina e Janaína eternizaram seus nomes e batalhas na memória do movimento e nas batidas do coração de quem teve a oportunidade de conhecê-las ou ouvi-las. Trajetórias de resistências, lutas e superações. Juntas, elas criaram a Associação de Travestis e Mulheres Transexuais do Ceará (Atrac), entidade presente na construção dos direitos civis das pessoas trans e travestis. Lutaram pelos direitos daquelas que a sociedade insistia em não querer ver e travaram uma batalha cujo objetivo maior era o de quebrar estigmas.
As duas são o exemplo prático do “lugar de fala”, expressão cada vez mais forte nos debates sociais, aparecendo com frequência nas articulações de movimentos LGBTQIAP+, feministas, indígenas e negros. “O lugar social não determina uma consciência discursiva sobre esse lugar. Porém, o lugar que ocupamos socialmente nos faz ter experiências distintas e outras perspectivas”, explica a filósofa, feminista negra e escritora Djamila Ribeiro.
Thina Rodrigues.

Travesti, nordestina e negra. Nasceu em 1962, em Brejo Santo, no Ceará, em uma época na qual pessoas trans não podiam sair às ruas durante o dia. E, mesmo assim, na busca por sobreviver em sociedade, eram humilhadas e recebiam ameaças de prisão por identificarem-se como travestis.
Aos 17 anos, Thina foi expulsa de casa e aos 20 foi presa durante a Ditadura Militar simplesmente por ser quem era. Enfrentou a violência policial e passou por situações que deixaram cicatrizes, mas, ao mesmo tempo, tornaram-na mais forte e resiliente.
Mesmo tímida, Thina escrevia histórias por onde passava: fosse em palestras, falando sobre identidade de gênero e as consequências da discriminação na vida dessas mulheres, fosse nas conversas com amigos, compartilhando gargalhadas. Ela era feita de narrativas de uma população que o tempo e o preconceito desejaram emudecer. Por isso, Thina falava. Falava alto para todos, todas e todes ouvirem: “somos seres humanos e precisamos ser respeitadas”.
Thina Rodrigues foi uma das mais de 625 mil mortes brasileiras causadas pelo coronavírus (Covid-19), em 29 de junho de 2020, aos 57 anos. Deixou um legado carregado de lutas, amor, respeito e muitas recordações nas trincheiras da luta cotidiana pela vida, pelos direitos humanos e pela igualdade.
Labelle Silva Rainbow, coordenadora executiva da Coordenadoria Especial da Diversidade Sexual da Secretaria dos Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SDHDS) da Prefeitura de Fortaleza, conviveu com Thina e testemunha a grandeza da líder. “Thina era uma senhora travesti. Não gostava muito de ser chamada de senhora, mas a gente conversava muito sobre essa questão da idade, porque a expectativa de vida de transexuais é de 35 anos e ela passou essa expectativa. Aprendeu tudo na escola da vida. Era uma figura arisca, mas essa resistência era por conta dessa capa, de uma armadura, que teve que construir diante de um contexto muito violento, quando muitas de nós são assassinadas. Ao mesmo tempo, ela era muito carinhosa, divertida, brincalhona e, nos momentos mais tenebrosos, era extremamente bem humorada, de riso fácil, de piadas, de tiradas de humor”, relembra.
Labelle conta que Thina se locomovia a pé para compromissos. “Ia do Benfica até a Assembleia Legislativa (no Meireles) andando e tinha uma força nesse caminhar. Fazia caminhadas pela luta e era realmente muito bonito de se ver porque ela acreditava na capacidade de mudar o mundo. Thina não veio para passeio. Veio para uma luta por transformação, respeito e dignidade.”
De acordo com a ONG Transgender Europe (TGEU), que monitora 71 países e trabalha pelos direitos da comunidade LGBTQIAP+, o Brasil é o país que mais mata essas populações no mundo. Segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (Antra), só em 2020, foram relatados 175 assassinatos de pessoas transexuais no país. Esses números só pioram, principalmente com o aumento da transfobia e homofobia no Brasil. Em 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que qualquer ato de homofobia será enquadrado como crime de racismo, o que resulta em pena de um a três anos de reclusão.
“Quem chora por nós? Thina usava muito essa frase e sempre me impactou porque mostrava a afetividade e a humanidade daquela pessoa que sempre se encontrou em luta. Hoje, as conquistas que temos são fruto da luta iniciada por ela e Janaína. É um trabalho incansável e de muito compromisso. A gente não pode deixar um minuto, porque temos um compromisso de acesso a serviços e direitos. É nessa perspectiva que a gente trabalha, com muita irmandade, solidariedade, porque somos comunidade para gerar outros caminhos e novas oportunidades”, complementa Labelle.
Janaína Dutra.

Uma dama de ferro. É assim que Janaína foi intitulada no documentário de Vagner de Almeida, produzido em 2011 para contar a trajetória da primeira travesti a ter uma carteira da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a exercer a advocacia profissionalmente.
Janaína nasceu em 30 de novembro de 1960, em Canindé, município do sertão cearense e um lugar marcado pela religiosidade e pelo patriarcalismo. Logo no início da adolescência, passou a ser alvo de transfobia, mas carregava a proteção e o apoio que vieram da base: a família.
Em entrevista para o documentário, em 2010, Dargenira Dutra, mãe de Janaína, lembrava da filha com carinho e no auge dos 90 anos falava da garra e determinação de Janaína de melhorar o mundo. “Um dia, ela me chamou no quarto, disse que queria conversar e falou da sua identidade. Eu disse que o corpo nada vale e citei até uma quadra: ‘Tudo passa, tudo muda, nesse mundo de ilusão. Vai para o céu a fumaça, fica na terra o carvão’. A fumaça é o bom procedimento, as boas virtudes. O carvão é o corpo que fica na terra. Nos abraçamos, choramos, mas eu sofria porque sabia das humilhações que ainda viriam”, revelou dona Dargenira, os olhos marejados de saudade.
Com esse apoio, Janaína não esmoreceu. Pouco tempo depois, foi morar com a irmã em Fortaleza e, em 1986, graduou-se em Direito pela Universidade de Fortaleza (Unifor). Em seguida, foi aprovada no Exame de Ordem da OAB e passou a dedicar-se à defesa jurídica e social da comunidade LGBTQIAP+.
Morreu em 2004, deixando um vazio para a família, amigos e para o movimento brasileiro pela diversidade sexual, que perdia uma de suas ativistas mais importantes. Vítima de câncer de pulmão, ela tinha 43 anos quando partiu, mas seu legado permanece vivo. Tanto que o Doodle, ferramenta do Google, homenageou os 61 anos da advogada brasileira que liderou a luta pelos direitos da população LGBTQIAP+ a nível nacional.
No documentário, há ainda declarações de Janaína. “O preconceito é cumulativo. Você sofre preconceito por ser homossexual e sofre mais preconceito por ser travesti. O preconceito aumenta quanto tem uma pele negra. Aumenta mais ainda quando você é soropositivo. Aumenta mais ainda quando você mora em uma favela. Aumenta mais ainda quando você não tem uma conclusão do ensino fundamental. Então, talvez todos esses conjuntos de demandas que fazem com que a travesti seja posta nessa segunda categoria de cidadã são o alimento carregador das minhas baterias para ir em frente e tentar vencer os desafios que me são impostos”, conta Janaína.
Do seu legado de luta por uma sociedade sem discriminação, destaca-se a fundação e presidência da Associação das Travestis do Estado do Ceará (Atrac) e da Antra. Em Fortaleza, a ativista dá nome ao Centro de Referência LGBT, serviço municipal de proteção e defesa da população Lésbica, Gay, Bissexual, Travesti e Transexual em situação de violência e outras violações de direitos em razão da sua orientação sexual e/ou identidade de gênero.
“A gente tem que ter a compreensão também que a sociedade não está preparada para a diversidade. Então, nós, travestis e trangêneros, estamos fazendo parte do processo de construção dessa sociedade para que possa, a médio e longo prazo, ter revertido todo esse peso que a sociedade nos impõe”, conclui Janaína.

