Posso ajudar?
Posso ajudar?

Site da Defensoria Pública do Estado do Ceará

conteúdo

“Sou eu que estou me dando à luz”

“Sou eu que estou me dando à luz”

Publicado em

Seis anos se passaram entre 2016, quando Maria Luz de Mica Elle compreendeu ser travesti, e esta quinta-feira (30/6), dia no qual ela passa a ter essa identidade no papel. “Eu sabia que tinha algo diferente em mim, mas não tinha coragem de falar. Porque o mundo ensina a gente a se encaixar num padrão. Cheguei a achar que não era humana! Através da arte, fui expressando coisas que só depois eu consegui interpretar como parte da minha personalidade. Minha história é babado”, diz.

Mica é uma das pessoas atendidas no Transforma, o primeiro mutirão da Defensoria Pública Geral do Ceará (DPCE) para mudar na certidão de nascimento o nome e o gênero de quem não se identifica com as características atribuídas na infância. Prestes a completar 35 anos, idade apontada em diversos estudos sociais como expectativa de vida média das populações trans e travesti no Brasil, ela passa a ter o 30 de junho como dia de um novo nascimento.

“Eu vou mudar de nome quando eu não deveria nem mais existir. Peguei minha certidão antiga esses dias e fiquei vendo um papel antigo que não me representa. Eu não consigo sentir nenhuma identificação com aquele nome [de batismo]. É a ficção de outra pessoa, não eu. Agora, eu sou a pessoa que eu quero. Estou me dando a possibilidade de existir porque minha certidão tem um nome que eu escolhi e um gênero com o qual me identifico. Sou eu que estou me dando à luz. Eu me vejo como minha obra-prima. Eu sou minha própria criação. Eu precisava ser eu”, sintetiza.

Artista em tempo integral, Mica chegou ao mutirão da Defensoria por intermédio do coletivo Mães da Resistência. “Por uma burocracia do dia a dia”, já tinha incluído o nome social no RG. E foi justo por causa desta experiência que ela sentiu a urgência de mudar a certidão de nascimento para alterar todos os demais documentos. “Foi surpreendente o misto de emoções que o nome social me causou. Eu senti que eu existia. O mutirão, então, foi uma glória. Veio pra ajudar a formar a identidade do que eu de fato sou, porque por muito tempo eu matei a travesti que existia em mim. Fui tudo o que esperavam de mim, mesmo eu não sendo nada daquilo. Tenho hoje muita certeza do que não sou e mais certeza ainda do que sou”, afirma.

Ela recorda que já tinha tentado mudar a certidão de nascimento por conta própria, sem o auxílio da Defensoria, conforme permite a legislação desde 2018. Mas enfrentou dificuldades que acabaram retardando a realização do sonho. Com o Transforma, Mica enviou a documentação toda por e-mail no começo do mês e hoje, apenas duas semanas depois, recebe o documento com o novo nome e o gênero no feminino.

 

 

“É tão burocrático fazer sozinha que acredito que muitas acabam parando no meio do caminho. O mutirão me permitiu ver a mudança como uma realidade de algo que eu já nem esperava mais. Apesar de a sociedade não tratar a gente como humanas, eu sei que tem um lugar pra mim nessa sociedade. O contato com outras travestis me fez entender isso e a compreender melhor quem eu sou. Meu nome é uma homenagem à minha mãe e às Marias da minha vida. É como se fosse uma poesia: ‘a Maria é a luz de Mica Elle’”, declama.

Soa poesia também o nome de Pedra Preciosa de Oliveira. Aos 24 anos, a professora de teatro por muito tempo não teve referências nas quais se espelhar ou mesmo para entender do que se tratava a ideia de não se identificar com o nome da certidão de nascimento nem com o gênero masculino. Teve como referência de feminilidade as mulheres da própria família. Mãe, primas e madrinha.

“Sempre tinha uma coisa que me perturbava sobre minha identidade e eu tinha medo de responder pra mim mesma. Na adolescência, eu pensava que era um homem gay. Quando entrei no teatro, isso começou a cair por terra. Encontrei outras travestis e passei a ter referências. Para escolher meu nome, eu fiz comigo mesma uma brincadeira. Porque meu nome de batismo significa pedra preciosa. Eu me autodeclarei aquela que é preciosa. Aquela que precisa estar viva. Aquela que tem muito a dizer. Aquela que precisa envivecer”, sentencia.

Pedra Preciosa sentiu a importância de ter o nome social no RG em 2021. Ainda não começou a fazer tratamentos hormonais, mas compreende a mudança na certidão de nascimento como um ato político. “Existe um apagamento histórico dentro dessa ‘desnação’ pra que a gente viva o que o homem branco coloca como documento. Se os homens brancos precisam de um papel pra me registrar como uma corpa feminina, então eu vou entrar nesse campo de disputa. Não vou me igualar a eles, mas vou entrar nessa disputa. Já que a lei dos homens brancos são as palavras, eu preciso retificar isso na certidão. Porque uma identidade não é só identidade de gênero. É uma identidade ancestral. Homens brancos não conseguem lidar com a grandeza de corpos que não se parecem com os deles”, analisa.

Para a jovem, esse 30 de junho é de renascimento. De reexistir. “É muito louco pensar que ontem eu fui no cartório onde fui registrada quase 25 anos atrás [pra assinar o termo que gerou a nova certidão recebida por ela hoje]. Foi algo muito potente. Tive uma vida toda sendo negligenciada pela sociedade por ser uma pessoa trans e agora, numa canetada, eu organizo a minha vida inteira. Eu posso não mudar o mundo, mas entendi ontem que posso me mudar. E, me mudando, eu posso me expandir pra ser a referência que eu não tive na minha infância. Estou muito feliz porque daqui a pouco vou estar a meio caminho dos 50 anos. E toda pessoa trans tem o desejo de se tornar velha, já que nossa expectativa de vida é muito pequena. Biologicamente, eu nasci em 23 de agosto. No santo, eu nasci em 24 de julho. Agora, em 30 de junho, eu nasço com um nome que eu autodeclaro”, comemora Pedra Preciosa.