“Sou feliz por ter conseguido ser quem sou”
Sillvio Lúcio Nóbrega Ferreira Silva tinha cerca de 40 anos quando se reconheceu numa nova identidade. Tudo era despertar. “Eu não sabia o que era homem trans. Ainda não se falava nisso, mas eu me sentia diferente. Interiormente, eu me sentia homem e desejava ter uma aparência masculina. Eu sempre tive trejeitos masculinos”, recorda.
Hoje com 57 anos, o funcionário público é referência pelo pioneirismo.
É o primeiro homem trans do Ceará, vivência que o levou a fundar o Instituto Brasileio de Transmasculinidades (Ibrat). Muito além disso, é um pai que deseja um mundo melhor para o filho e um homem que luta por aquilo que acredita. Como ele mesmo se define: “eu nasci com o sangue de militância.”
Mas a caminhada não foi fácil. Sillvio precisou lidar com a rejeição de quem se negava a aceitar o que não conhecia. No entanto, desistir de ser quem realmente era nunca foi uma opção. Apesar do processo doloroso e, por vezes, excludente que enfrentou em busca de sua verdadeira identidade, ele tem muito orgulho de si e daquilo que se tornou.
“Sou artesão de barro e madeira. Sou um sonhador. Sou um homem feliz por ter conseguido construir uma família. E mais ainda: eu sou feliz por ter conseguido ser quem sou, por ter conseguido ser Sillvio Lúcio. Eu não poderia morrer de outra forma. Eu não teria sido feliz na minha passagem por essa vida se fosse de outra maneira.”
Atualmente, debates relacionados à identidade de gênero e orientação sexual estão em evidência. Mas nem sempre foi assim. Quando o funcionário público se reconheceu enquanto homem trans, só outros quatro homens haviam se reconhecido também e nenhum deles morava no Ceará. A distância, no entanto, não foi um empecilho para que se unissem e se organizassem politicamente na luta por direitos de quem ainda era invisível socialmente.
O objetivo do grupo era o de abrir espaço para pautas sobre transexualidade em conferências, congressos e outros eventos que dificilmente reconheciam e discutiam a existência e os obstáculos de homens transexuais. “Em 2012, nós já não éramos mais só cinco. Outros homens trans saíram das sombras e diziam que através da nossa visibilidade tinham tomado coragem para se reconhecerem homens trans. A partir daí, nós fomos aumentando esse número nas conferências, nos congressos, nos nossos estados, nas discussões acadêmicas das universidades…”, remonta.
O desejo dele de mudar a realidade que vivia foi ganhando visibilidade, assim como Silllvio. Logo o militante transmasculino passou a ser convidado para participar de programas de TV e usar a própria voz em prol de quem permanecia calado. Foi então que, também em 2012, foi chamado para participar de um documentário sobre gênero e ofereceu ao mundo não só sua imagem, mas sua história de vida e resistência. “Eu aceitei porque a luta precisava”, declara.
Além das aflições, Siilvio e os outros amigos também compartilhavam sonhos. Um dos principais era o de se verem representados em eventos e instituições do movimento LGBTQIAP+. Sem saber como e quando isso aconteceria, o pai do pequeno Théo e marido de Widdy Nóbrega revelou aos companheiros de militância o desejo de fundar uma entidade que retratasse os homens trans em diferentes contextos, demandas, desejos e necessidades de reconhecimento e visibilidade. Assim, então, nasceu o Ibrat, entidade cujo principal intuito era contribuir com o processo de compreensão da identificação do homem trans. A instituição, desde sua origem, luta contra o preconceito e durante muito tempo criticou códigos de saúde que classificavam mulheres e homens trans como seres com transtornos mentais (algo corrigido pela Organização Mundial de Saúde (OMS) somente agora, em pleno 2022).
Sillvio conta sobre uma mudança que achou necessária e significativa em relação ao nome do instituto. “Em 2015, nós conseguimos reunir 311 homens trans de todo Brasil no primeiro Encontro Nacional de Homens Trans, na USP [Universidade de São Paulo]. Nesse encontro, nós alavancamos a luta. Foi quando decidi que o Ibrat não seria lnstituto Brasileiro de Homens Trans e sim o Instituto Brasileiro de Transmasculinidades, porque nós conhecemos homens de diversas vertentes, de diversas orientações sexuais, cis gêneros, não binários, assexuados. Nós tínhamos que fortalecer o reconhecimento da orientação sexual desses homens.”
Os avanços já foram muitos, reconhece, mas ainda não são suficientes. Silllvio acredita que ainda é preciso mudar para o mundo acolher melhor pessoas transexuais. “Eu acho que nós ainda somos uma minoria em relação ao universo dos outros segmentos LGBTs e entendo que essa minoria ainda não teve a visibilidade necessária para o fortalecimento de questões como a educação. Nós ainda temos trans que não frequentam a escola ou, se frequentam, no Ensino Fundamental abandonam por vergonha, bullying, maus tratos… Porque , muitas vezes, o professor traz no seu ensino, no seu discurso, nas suas ações do dia a dia um preconceito religioso velado. Ele não expõe, mas age e trata a questão pessoa trans de forma velada e cruel, muitas vezes. Nós somos obrigados a nos isolarmos em uma bolha. Então, são cicatrizes que cicatrizam aparentemente, externamente, mas, internamente, elas não saram.”
Ele reconhece, entretanto, que cada vez há mais espaço para todos serem que verdadeiramente nasceram para ser. “Eu atendo pessoas com 16, 17 anos que já se reconhecem como homens trans. Aí vejo nesses jovens, que eles têm uma liberdade de pensamento em relação à transexualidade que a minha geração não teve. É tanto que a gente tem um grupo de homens trans e a gente costuma se chamar de a segunda geração, porque hoje a primeira geração tem esses jovens , muitos na faixa de adolescência e pré-adolescência, que têm uma mente mais aberta e lidam com o processo transexualizador com maior facilidade, com mais leveza”, finaliza.

