Defensores enaltecem decisão do STF que admite racismo estrutural como violador de direitos de pessoas negras
Texto: Bruno de Castro
Ilustração/Infográfico: Valdir Marte
“O Brasil é a mais avançada democracia racial do mundo”.
Gilberto Freyre (1900-1987), sociólogo responsável
por disseminar a falsa ideia de que não há racismo no Brasil.
“Não existe democracia racial no Brasil.
O racismo é um projeto político que cria o racista
e se alimenta da desigualdade mantida pelo Estado”.
Silvio Almeida, filósofo que popularizou
o conceito de racismo estrutural no Brasil.
Por unanimidade, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu nesta quinta-feira (18/12) a existência do racismo estrutural no Brasil. Com isso, admitiu ser o preconceito racial um grande violador dos direitos mais básicos da população negra. Este é um entendimento inédito na história do Judiciário no país, avaliado positivamente por defensoras e defensores públicos que diariamente pautam a questão em atuações em todo o Ceará.
Os ministros posicionaram-se após a provocação formal feita por sete partidos políticos em uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. A ADPF é uma forma de proteger direitos fundamentais quando estes são violados pelo poder público, que é quem deveria resguardá-los e promovê-los de maneira igualitária em um Estado Democrático de Direito como o Brasil. Assim, o STF determinou de medidas como:
- revisão da política de cotas raciais para ampliar o acesso à educação e ao emprego;
- criação de protocolos para melhor atuação dos órgãos do sistema de justiça e polícias;
- elaboração de um plano de combate ao racismo estrutural;
- revisão do Plano Nacional de Igualdade Racial (Planapir) em 12 meses;
- realização de campanhas de conscientização racial e combate ao racismo;
- e concessão de incentivos dentro da Lei Rouanet.
“A decisão do STF é muito significativa porque confirma algo que nós, da Defensoria, sentimos diariamente, já que as pessoas que atendemos são de maioria negra”, afirma o subdefensor geral Leandro Bessa, referindo-se ao fato de 70% do público da DPCE ser preto e pardo. Também presidente do Comitê de Defesa e Promoção da Igualdade Étnico-Racial da instituição, ele reflete: “sendo a raça fator principal da violação de direitos, é por ela que o Estado precisa implementar medidas de reparação. Mas o entendimento do STF também nos convida à compreensão do papel que nós, pessoas brancas, precisamos assumir na luta antirracista. Porque ela não é nem pode ser exclusiva de negros e negras. Então, não basta só eu, enquanto homem branco, não praticar atos racistas. Nós temos que combater o racismo implementando políticas públicas que tenham a raça como espinha dorsal e não como adereço. Pessoas brancas devem se aliar a esta pauta porque ela é, afinal, sobre a sociedade que temos e sobre a sociedade que queremos. Ela é sobre todos nós”.
Com a decisão do STF, o Brasil passa a ter mais um importante marco jurídico de combate ao racismo. Ela une-se, por exemplo, ao entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ), de fevereiro deste ano, que rejeitou a existência de racismo reverso (ou seja: praticado de negros contra brancos). E soma-se ao fato ainda pouco mencionado de o Estado ter reconhecido, em 2001, a própria condição de racista. A admissão aconteceu durante o governo de Fernando Henrique Cardoso como resposta às articulações dos movimentos negros na Conferência Mundial contra o Racismo, ocorrida em Durban, na África do Sul.
CONVOCAÇÃO INÉDITA
Para a defensora Rayssa Cristina Santiago dos Santos, o posicionamento do STF é relevante e, ao mesmo tempo, controverso. Enquanto mulher preta integrante da primeira turma de cotistas raciais da DPCE, ela critica o não reconhecimento pelos ministros de um Estado de Coisas Inconstitucional decorrente do modo como o racismo estrutural opera ao excluir a população negra do acesso a políticas públicas.
Por sete votos a três, o Supremo afastou a hipótese de essa violação massiva de direitos fundamentais dar-se pela inércia ou incapacidade do Estado. Os magistrados compreendem que os projetos implementados até aqui sanam parte do problema. Já Rayssa considera que “as políticas públicas são insuficientes”. A defensora, no entanto, comemora a decisão do Supremo, principalmente, porque pela primeira vez órgãos de diversas instâncias foram convocados formalmente à luta antirracista.
“É um grande marco porque não deixa a questão só com o sistema de justiça e traz prazos para termos um primeiro arcabouço de combate ao racismo. Não são só projeções sem concretude. E isso vai impactar na nossa atuação porque vai caber a nós cobrar a aplicação dessas políticas. É um trabalho que começa na ponta. E a ponta é a Defensoria. Então, nós temos que adotar as diretrizes dessa decisão nos nossos peticionamentos atentando aos protocolos e planos. Temos que chegar nas comunidades e saber o que está sendo de fato feito. Segue sendo o trabalho de formiguinha que a gente já faz todo dia, mas agora com uma base normativa que não pode ser ignorada”, avalia Rayssa, que atua em Morada Nova e também integra o Comitê Étnico-Racial da Defensoria.
Análise semelhante faz a supervisora do Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas (NDHAC) da DPCE, defensora Mariana Lobo. Ela destaca que o STF agora pautou o racismo na esfera pública, coletiva, desconsiderando a possibilidade de o preconceito racial tratar-se de uma prática individual e sem consequências sociais. “É importante porque mostra que o racismo está enraizado nas instituições e na nossa vida social. Porque a sociedade brasileira encontra no racismo seu elemento mais importante, já que tivemos quase quatro séculos de escravidão e lidamos com os efeitos disso até hoje. Nossas desigualdades são procedimentos da coletividade! Essa compreensão muda tudo, pois fortalece as políticas públicas e tira o debate de um lugar setorial para a centralidade do debate. Mostra a raça como um imperativo constitucional e de urgência nacional, de responsabilidade de todos nós”, diz Mariana.
Ela acredita que a decisão do STF possa dar novos rumos a casos de criminalização dos jovens negros e de periferia, bem como às polêmicas nos julgamentos de denúncias de perfilamento racial (quando a Polícia aborda pessoas negras e dispensa pessoas brancas em abordagens de rua). “Existe racismo estrutural dentro do sistema de justiça! Então, o fomento da política pública é muito importante para fazer o debate avançar”, pontua Lobo.
NOVO CAPÍTULO NA LUTA ANTIRRACISTA
Responsável pela popularização no Brasil do conceito de racismo estrutural, o filósofo Silvio Almeida comemorou nas redes sociais a decisão do Supremo. Ele disse: “histórica decisão do STF que, se estrategicamente utilizada, abre um novo capítulo na luta antirracista no Brasil”. No livro sobre a temática que lançou em 2019, o intelectual explica que:
“O racismo é uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo racial ao qual pertençam”.
Ou seja: se você for branco, terá privilégios; do contrário, estará em desvantagem. Como 55,5% da população do nosso país é negra, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), é possível dizer que vive em desvantagem mais da metade dos habitantes do território mais negro do mundo fora do continente africano.
Ao participar de evento na DPCE no último dia 10/12, a filósofa Sueli Carneiro refletiu sobre o impacto do racismo na garantia de direitos. “As desigualdades no Brasil vêm sendo construídas historicamente e têm forte marcador racial, que se evidencia no destino de negros e indígenas no pós-abolição: negros abandonados à própria sorte e os indígenas quase exterminados, preteridos ambos dos processos de desenvolvimento econômico pela política eugenista de branqueamento da sociedade com a migração europeia para substituir esses estoques raciais indesejáveis”.
Ela destaca o papel da Defensoria no combate ao preconceito racial. “Falar de direitos humanos no Brasil exige reconhecer que a democracia brasileira não assegura o desfrute dos direitos humanos para todos os seus cidadãos. Mais que isso: é preciso reconhecer que a democracia de baixa densidade não reconhece plena humanidade a todas as pessoas. Daí a escassez na observância e no respeito aos direitos humanos de todas as pessoas. Portanto, aqui, neste país, não basta celebrar direitos. É preciso enfrentar os mecanismos que os negam. A Defensoria e os direitos humanos existem para assegurar que ninguém seja descartado. Ambos se erguem na contramão de uma lógica social que naturaliza a exclusão, criminaliza a pobreza e desumaniza a diferença”, sublinhou.
EXTENSÃO AOS INDÍGENAS E AMARELOS
Embora a decisão do STF diga respeito apenas à população negra, é possível pensar na extensão dos efeitos dela aos povos indígenas e amarelos (asiáticos/orientais). Isso por dois motivos: 1) ambos são categorias oficiais do sistema de classificação racial brasileiro, previsto no Estatuto da Igualdade Racial e implementado pelo IBGE, e 2) o racismo afeta não apenas pessoas pretas e pardas mas sim a todos os indivíduos não brancos.
Primeiro defensor indígena a atuar no Ceará, Francisco Júnior Pankará lembra de decisão do próprio STF, datada de 2004, na qual os ministros analisam o racismo como um fenômeno de origem social (e não biológica, já que raças biológicas comprovadamente não existem desde a década de 1950). “Essa decisão de 21 anos atrás está em conformidade com a constituição, com as leis protetivas e com as convenções internacionais. O racismo estrutural é uma mácula; um problema fundante do nosso país. Por isso, essa decisão de agora do Supremo deve abranger outros povos marginalizados e racializados, adequando medidas para essas populações também serem contempladas nas ações determinadas pelos ministros”, pontua.

