Branco sai, preto fica: defensores comentam decisão do STF que criminaliza prática policial do perfilamento racial
Texto: Bruno de Castro
Ilustração: Diogo Braga
Uma festa acontece. De arma em punho, militares invadem o salão. A ordem é: “branco sai, preto fica”. E gritos e disparos preenchem o lugar. Ambientada em 1986, a cena é de um premiado documentário brasileiro* e expõe a rotina das periferias do país. Denuncia uma seletividade que dura séculos. Mas só agora, em abril de 2024, foi condenada pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
A mais alta corte brasileira considerou ilegal o chamado “perfilamento racial”, quando a abordagem da Polícia é feita com base na raça do “suspeito”, durante o julgamento de um caso no qual agentes de segurança abordaram em Bauru (SP) um homem alegando tratar-se de “um indivíduo de cor negra em cena típica de tráfico de drogas”. A informação consta no boletim de ocorrência.
“O perfilamento racial está arraigado à estrutura social. E a Polícia está posicionada nessa estrutura social. Ela é, ao mesmo tempo, uma instituição e uma expressão de como nós, enquanto sociedade, somos racistas. Para prender uma pessoa negra, não é preciso prova confiável. Há uma seletividade probatória. O que é isso? Qualquer coisa basta para essa pessoa ser encarcerada, inclusive a intuição policial. O problema é que essa intuição é subjetiva; é uma filtragem racial, porque com pessoas brancas a situação é o oposto disso e as provas têm alguma confiabilidade”, avalia a defensora Lara Teles, atuante na Vara de Delitos de Organizações Criminosas.
Estudiosa do tema, ela destaca a probabilidade 4,5 vezes maior no Brasil de uma pessoa negra ser abordada por um policial do que uma pessoa branca. Estudos também indicam que, ao serem detidas com droga, pessoas negras têm mais chance de ficar presas. Dentre outros fatores, isso contribui para a superlotação do sistema carcerário – cujo perfil racial médio é o do homem negro. O país tem hoje cerca de 830 mil detentos.
Lara frisa que apenas 1% das 12 milhões de abordagens policiais feitas em São Paulo em 2020, por exemplo, resultaram em prisões nas quais a pessoa detida realmente estava com algo que a incriminasse. Por isso, ela defende que, como já determina o Código de Processo Penal (CPP), a prática seja mais estratégica e menos subjetiva.
Em suma: por partir do pré-conceito de associar pessoas negras ao cometimento de crime, causando, assim, uma discriminação negativa e desfavorável a essa população, o perfilamento racial é, portanto, uma conduta racista. “O critério subjetivo do policial não é controlável. Nós não temos como saber o motivo objetivo da abordagem. E cor da pele ou bairro onde se mora não são suficientes pra colocar ninguém sob suspeita. Isso não tem respaldo na lei. A eficiência é baixa e o constrangimento de uma abordagem é enorme. Então, a decisão do STF é um passo importante para a Defensoria trabalhar isso nos processos. Mesmo que ele próprio não tenha aplicado esse entendimento no caso que suscitou essa decisão, ela vem para provocar efeito dissuasivo. Se o policial sabe que a abordagem dele não vai valer, ele vai se sentir desestimulado a fazê-la. Mas nosso cenário é grave. Pobre tem medo de Polícia. Preto tem medo de Polícia. Não confia. E tem esse posicionamento crítico porque sente todo dia na pele os efeitos desse perfilamento racial”, acrescenta Lara.
O QUE DIZ A LEI
Segundo o CPP, buscas só podem ser feitas sem mandado judicial se a pessoa estiver armada ou de posse de algo que sugira o cometimento de crime. Porém, no dia a dia das comunidades mais pobres, onde a população negra é maioria, não é isso o que acontece. Natural do Rio de Janeiro, Mike Chagas viu isso de perto quando morava na capital fluminense e, agora, como defensor no Ceará, atua em prol dessas pessoas, muitas vezes interpeladas “sem motivo” pela Polícia.
“A abordagem em bairros pobres, onde estão as pessoas negras, é sempre com violação de direitos. Fazem isso alegando ser ‘em prol da segurança pública’. Mas quantas vezes a gente se depara com abordagens em que a pessoa toma um tapão já de início? Ter ‘cara de bandido’ é um argumento pra justificar essa abordagem policial. Mas o que é ter cara de bandido? A abordagem ‘aleatória’ traz um subjetivismo que é injustificável. A Polícia é um órgão de Estado. E um órgão de Estado precisa se justificar para atuar. Como explicar que o policial atuou porque a pessoa é negra? Há um vício aí que contamina tudo o que vem depois”, analisa Mike Chagas.
Ele considera o perfilamento racial uma demonstração do racismo que estrutura a sociedade e não algo restrito à esfera jurídica. Por isso, Chagas avalia como fundamental a atuação da Defensoria, que aplica o Direito enquanto mecanismo de estabilização social.
O que suscitou a decisão do STF, por exemplo, foi um caso no qual atuou a DP de São Paulo. “Eu acho que a decisão do STF pode representar uma mudança na cabeça do policial. Porque não se pode chegar do nada e prender o cara porque ele é pretinho e tá usando camisa da Cyclone. Uma pessoa branca não é abordada no Leblon [bairro nobre do Rio] por estar sem camisa. Uma pessoa negra sim. Porque uma pessoa negra em área nobre é tida como ameaça”, acrescenta.
TRÊS CONSEQUÊNCIAS
Já o defensor Breno Vagner acredita em três desdobramentos práticos da decisão do STF de, enfim, criminalizar o perfilamento racial. O primeiro deles é firmar o entendimento de que buscas pessoais não podem ser tratadas como rotina da atuação policial. Pelo contrário. Precisam ser exceção, pois representam uma invasão à vida privada e à liberdade das pessoas.
A segunda consequência é a necessidade de critérios serem definidos para as abordagens policiais, quando necessárias, acontecerem e respeitarem os direitos humanos. Assim, Breno acredita que será possível aferir se a interpelação foi feita dentro da legalidade a partir de diretrizes objetivas (e não subjetivas, como hoje ocorre).
Por fim, o defensor projeta a mitigação de práticas que reproduzem preconceitos estruturais não somente contra pessoas negras – mas também contra outras minorias (LGBTs, mulheres, idosos etc). “A abordagem depender só da intuição policial é insuficiente. Ao definir critérios objetivos, você permite que a prática depois seja fiscalizada. Essa decisão do STF é um direcionamento importante aos demais tribunais, mas a Defensoria terá que continuar batalhando pela definição dos critérios objetivos”, analisa Breno Vagner.
Ele atua na Defensoria Criminal de Maracanaú e lembra que a criminalização do perfilamento racial já foi deliberada por outra importante corte brasileira (o Superior Tribunal de Justiça, em 2022). O entendimento do STF vem para fortalecer essa perspectiva. “O artigo 244 do CPP já diz que a busca tem que ter fundada suspeita. Essas decisões dão maior efetividade à interpretação dessa lei. Porém, pra ela estar inserida no âmbito da Polícia, vai depender de o debate político continuar. Vamos ter resistências, porque o racismo não é estrutural à toa, ainda mais que a gente percebe o quanto essa abordagem é naturalizada pela população e pelas instituições. Mas, até chegarmos a essas decisões, muitas batalhas foram travadas, inclusive por movimentos sociais, pelos movimentos negros… Então, a decisão do STF é um resultado muito importante. Mas não termina aí”, finaliza Vagner.
* O documentário “Branco sai, preto fica”, escrito e dirigido por Adirley Queirós, foi lançado em 2015 e pauta a violência policial. A história se passa em Ceilândia, no Distrito Federal, e tem como pano de fundo a ação de militares em um baile black de uma comunidade periférica (e negra). A obra foi aclamada pela crítica e ganhou diversos prêmios em festivais de cinema.