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“A Fabíola que eu sou gritou dentro de mim”

“A Fabíola que eu sou gritou dentro de mim”

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Aos 62 anos, Fabíola Rios sabe que é um ponto fora da curva. Chegar a essa idade sendo travesti no país que mais mata pessoas LGBT no mundo é ter a própria vida como estandarte. “Mas nunca tive dúvida do que eu sou. Pra mim, ser travesti foi a melhor coisa da minha vida. Meus melhores momentos foram sendo mulher. Tudo o que construí foi sendo mulher. Sou feliz assim e vou ficar velhinha, de bengala, assim. Serei sempre Fabíola.”

E foi por isso, pelo desejo de ser para sempre também no papel quem há muito já é em sentimento, que ela buscou a Defensoria Pública do Estado (DPCE). Viu no Transforma, o mutirão promovido todo ano pela instituição para retificar nome e gênero de pessoas trans, a oportunidade de, enfim, eternizar-se.

“Meus amigos me chamavam de Fábia. Depois, começaram a chamar de Fabíola”, revela. Foi o tempo quem amenizou os dizeres e fez o primeiro nome tornar-se o próprio diminutivo, que dizem por aí ser sinal de muito carinho quando alguém assim nos evoca. Fábia, então, virou Fabíola no andar dos anos, mas com 16 ela já sabia que era diferente. No entanto, só caiu na real depois. E explica o porquê.

“Eu não me encontrava sexualmente nem como homossexual nem como heterossexual. Achava que ia dar desgosto aos meus pais, porque era um tempo muito conservador. Eu tinha medo de sofrer, mas saí de casa aos 19 anos, conheci uma travesti e falei pra ela que estava sem lugar pra dormir. A gente passou a noite num terreno baldio. Foi quando nasceu a travesti dentro de mim. A Fabíola que eu sou gritou dentro de mim”, recorda.

Fabíola lembra da primeira minissaia, usada no Pelourinho, em Salvador; do primeiro silicone, colocado no fim da década de 1980, no Rio de Janeiro, depois de dois dias e meio sacolejando numa viagem de ônibus desde Fortaleza; da acolhida em terras fluminenses por outras travestis num lugar onde só elas moravam; e de como não se encaixava no estereótipo criado pela sociedade de que toda travesti é perigosa. Ela não queria o perigo das ruas. Sonhava com o brilho das boates. Com um mundo colorido, no qual pudesse ser quem era livremente. E, para quem atravessou a ditadura militar, um regime de perseguição e morte, liberdade é palavra cara.

Por isso, não se privou de viver o que queria viver na Europa. Foi, como se diz no cearensês, “de mala e cuia”. Desembarcou na Suíça sem falar uma palavra de alemão, o idioma principal do país, e sem dinheiro. Nunca teve, porém, o desejo de fazer a cirurgia de redesignação sexual, tão sonhada por muitas. Por medo do pós-operatório, mas também por compreender que não é necessário submeter-se a um procedimento como esse para ser uma pessoa trans.

Mais importante do que a cirurgia, Fabíola considera fundamental a mudança das palavras: na certidão de nascimento e em todos os demais documentos. Pois é por elas, pelas palavras, que primeiramente a gente nasce. Tanto é que foi exatamente o modo como os outros se referiram a ela uma vida inteira que a fez passar por situações de constrangimento.

“Eu chegava nos cantos e ia no balcão toda me tremendo explicar que o nome no documento tava de homem, mas eu queria ser chamada de Fabíola. Ainda me tremo toda só de pensar em como foi pra tirar minha carteira de motorista. Foi um pânico! Eu vivia com medo, nervosa. Pra viajar, tinha que ficar me explicando porque quando a pessoa olha pro documento e vê nome de homem tudo muda. A feição da pessoa muda na hora. É frustrante”, lamenta.

Isso é algo que, com a retificação da certidão de nascimento e do RG no Transforma, ela quer deixar de vez no passado. Soube do mutirão da Defensoria pela televisão e, de pronto, buscou ajuda da sobrinha para conseguir juntar a papelada e dar entrada na correção do documento. “Eu pensava: como vai ser minha vida? Será que mudando o nome eu tô matando quem eu fui? Como vai ser o antes? Ainda me pergunto se a Fabíola tá nascendo agora, mesmo já existindo há quase 45 anos. Tô aqui numa ansiedade danada. Porque é uma coisa que nunca fiz”, admite.

A despeito do frio na barriga causado por esse chamado pro futuro, ou exatamente por causa dele, Fabíola olha para trás e projeta uma vida ainda mais cheia de si. “Eu tô me sentindo tão bem! Eu tô no meu auge! Tô me amando mais agora do que antes. Porque agora eu moro na minha casa, saio no dia que eu quero, durmo bem, acordo bem… Vivo uma vida normal: vou na praça, vou no restaurante, sou vista com bons olhos… Onde eu chego, as pessoas me elogiam. E os homens? Ah, eles dizem que eu tô maravilhosa! Ouço tantas palavras bonitas! Eu boto uma foto minha no Facebook e dá 359 curtidas, fora comentários! Nunca tive problema com ninguém. Só tomo minha cervejinha porque, pelo que passei na minha vida, eu mereço, né?”.

Diminutivo de Fábia, Fabíola é um nome ligado à terra. Diz respeito a quem planta. Nesta sexta-feira (30/6) de Transforma, então, ela plantou duas sementes: a pessoa que biologicamente nasceu, homem, e a mulher que é agora – para, assim, testemunhar, de imediato e para todos os dias adiante, o florescer e crescimento de uma árvore bonita. Ela própria. Fabíola.