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“Caminhando e insistindo no sonho, o retorno vem”

“Caminhando e insistindo no sonho, o retorno vem”

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Tem sete anos que Caio Rocha saiu da casa dos pais. Aquele tempo era 2016 e, como muitas pessoas LGBTs, ele viveu a independência precocemente. Fez, então, de tudo para sobreviver. Vendeu água no sinal, foi garçom, comercializou doce nos ônibus, cortou cabelo… Hoje, aos 23, faz planos. Quer tirar carteira de motorista e morar em casa própria.

Direitos trabalhistas garantidos, expediente definido, salário fixo e benefícios, ele conta, enfim, com alguma estabilidade financeira após anos em bicos ou empregos precarizados e marcados pela violência. Caio é um homem trans e integra desde agosto de 2022 o quadro de colaboradores da Defensoria Pública Geral do Ceará (DPCE).

“Quando a vaga surgiu, eu tinha acabado de chutar o balde. Tava trabalhando num bar heterotop que o gerente era muito ruim e desrespeitava minha identidade de gênero. Dois dias depois de cair fora de lá, recebi uma ligação sobre a vaga na Defensoria. Era uma vaga para pessoa trans e eu achei ótimo porque eu concorri de igual pra igual”, recorda.

Há cinco meses, portanto, ele tem deixado impecáveis a área externa e os jardins da sede da DPCE. Atua na zeladoria do prédio. E desfila simpatia enquanto isso. “Eu não me importo com nenhum tipo de função. Me importo é com a minha independência, com o meu bem-estar, ter uma moradia, ter o que comer, ter o que vestir e com a ração das minhas gatas.”

É com elas, as gatas, aliás, que ele divide o teto hoje em dia numa periferia de Fortaleza e projeta futuros. É assim porque se enxerga como pertencente às naturezas. “Sou um homem preto e indígena. Sempre fui rodeado de planta e animal. E aqui [no trabalho, na Defensoria] eu cuido das plantas e dos bichinhos que aparecem. Então, foi tranquilo demais me adaptar. É bom trabalhar nessa função. Acho melhor lidar com a natureza.”

A vontade de ser autônomo, sempre sabotada por um mercado de trabalho nada disposto a absorver a mão de obra de pessoas trans, faz Caio mirar longe após ter tido parte da juventude atravessada por experiências das quais não se envergonha mas não pretende repetir. “Se não fosse meu passado, eu não seria a pessoa que sou hoje. Já fui detento e foi lá no presídio que fui considerado Caio. Eu já me sentia trans, mas não tinha meu nome trans. As mulheres que estavam reclusas comigo foi quem me reconheceram como Caio, aceitaram quem eu sou”.

 

 

Ele remonta a própria história a partir do lugar de quem constrói um presente diferente em busca de uma vida adulta cada vez mais digna. E, nesse processo, nessa busca, nessa edificação de si, se depara com muitos amigos e muitas amigas trans ainda em situação precária, de exclusão, como foi a dele até bem pouco tempo atrás.

Caio diz que a maioria dos/das colegas não trabalha e quem tem ocupação está, em geral, em postos sem qualquer garantia trabalhista. “Todos nós merecemos ter nosso trabalho de carteira assinada e nossa renda fixa. Mas no momento em que você diz que é um homem trans você sente a energia das pessoas. Muitas não compreendem, não aceitam. Agora, pra mim, tá mais confortável. Tenho o respeito entre os companheiros de trabalho e pessoas que me chamam pelo meu nome. Posso falar quem realmente sou.”

No que entende por “ser quem realmente é”, Caio almeja um diploma universitário. Quer cursar arquitetura. Um ideal alimentado desde a infância e que ele ainda não conseguiu alcançar por não se sair tão bem no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Já foram quatro tentativas. E este ano haverá mais uma. “Tenho que estudar mais Português. Mas sou bom em Matemática e desenho mais ou menos bem. Então, vou tentar de novo e de novo e de novo. Enquanto isso, também tenho o sonho de abrir minha barbearia. Um espaço meu mesmo, sem ser alugado. Caminhando e insistindo no sonho, o retorno vem”, ensina.

O jovem corta cabelos há cinco anos. Atua em projetos sociais como barbeiro autodidata. Aprendeu, como diz, “nas minhas vivências mesmo”. Ainda assim, pretende fazer um curso profissionalizante na área. É esse outro investimento a ser feito com o salário que recebe pelo trabalho na Defensoria. Já tem comprado itens do lugar, inclusive, e prospectando parceiros, amigos de infância, para o empreendimento-sonho.

“Com a grana que ganho na Defensoria, esse mês já vou começar a fazer autoescola. Minha meta é tirar minha carteira A e B. E, depois, já tentar conquistar minha motinha. Depois vou conquistar minha casa própria. Aí, é chutar o balde e independência”, brinca, na certeza de que o futuro é um lugar bom, como deve ser. Para todos, todas e todes.