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Cinco anos da Chacina do Curió: uma luta por direitos humanos 

Cinco anos da Chacina do Curió: uma luta por direitos humanos 

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Na madrugada do dia 11 para 12 de novembro de 2015, a vida da cuidadora de idosos Edna Carla Souza Cavalcante mudou bruscamente. O filho Álef Souza, com apenas 17 anos, foi morto a tiros por homens encapuzados durante abordagem em frente à casa de amigos, no bairro Curió. Junto a ele, estavam quatro amigos e três também foram atingidos por tiros, resultando na morte de dois deles. Uma conseguiu fugir e se esconder embaixo de um carro. Paralelamente a este episódio, outros acontecimentos semelhantes ocorreram naquela mesma noite. Em menos de seis horas, 11 pessoas foram mortas e sete ficaram feridas, em ações ocorridas nos bairros Curió, Alagadiço Novo, São Miguel e Messejana, em Fortaleza. A série de homicídios ficou conhecida como Chacina do Curió ou da Grande Messejana, que completa cinco anos na próxima quarta-feira, 11 de novembro.

As vítimas tinham idades entre 16 e 37 anos, a maior parte, adolescente: Antônio Alisson Inácio Cardoso, 17; Jardel Lima dos Santos, 17; Álef Sousa Cavalcante, 17; Marcelo da Silva Mendes, 17; Patrício João Pinho Leite, 16; Jandson Alexandre de Sousa, 19; Francisco Enildo Pereira Chagas, 41; Valmir Ferreira da Conceição, 37; Pedro Alcântara Barroso, 18; Marcelo da Silva Pereira, 17; Renayson Girão da Silva, 17.

“Quando aconteceu, eu fiquei perdida. Eu passei dois meses sem querer falar sobre isso, eu não aceitava”, relembra Edna, 50 anos. “Perdi não só o filho, perdi um sonho, um amigo. Foram muitas coisas destruídas ao mesmo tempo. A bala que matou meu filho matou uma parte da minha história também”, conta a mãe de Álef.

Meses após a chacina, Edna começou a ser estimulada por amigos do filho para que ela conseguisse “ir pra luta”, como ela define. “E eu fui para a luta com uma garra muito grande”, narra. Desde então, ela passou a fazer parte do coletivo Mães do Curió, grupo que surgiu para buscar reparação pelos homicídios dos jovens da periferia de Fortaleza e evitar que novos casos voltassem a ocorrer, abarcando, inclusive, outras lutas sociais. Ela, agora, tem orgulho de dizer que é militante por direitos humanos.

Investigação do Ministério Público Estadual do Ceará (MPCE) apontou que 45 policiais militares estariam envolvidos na chacina, que seria uma retaliação à morte do PM Valtemberg Chaves Serpa. O policial, por volta de 19h50min do dia 11 de novembro, foi morto ao intervir em tentativa de assalto contra a esposa, no bairro Lagoa Redonda. Após o caso, mais tarde da noite, começaram a ocorrer as abordagens por entre os bairros da Grande Messejana. 

Denúncia referente à chacina foi oferecida pelo MPCE contra 45 policiais militares e recebida pelo Colegiado de 1º Grau, responsável pelo julgamento do processo, em relação a 44 deles. Em outubro de 2019, por unanimidade, a 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Ceará decidiu que 34 policiais militares serão levados a júri popular, ainda sem data prevista. Dez PMs foram considerados impronunciados, ou seja, sem provas suficientes para irem ao Tribunal do Júri.

Ação Civil Pública – A Defensoria Pública do Ceará, em dezembro de 2019, ingressou com uma Ação Civil Pública (ACP), que tem por objeto a obrigação de fazer, por parte do Estado, em caráter não monetário, em favor das vítimas sobreviventes e família das vítimas fatais. Entre os pedidos está a garantia do atendimento psicológico permanente a estas famílias. “Houve o parecer do MPCE pelo deferimento parcial da ACP para conceder tratamento psicológico e psiquiátrico”, comenta a defensora pública Sheila Florêncio, supervisora da Fazenda Pública e Execuções Fiscais. 

“Determinando ao Estado do Ceará que ofereça gratuitamente, por meio de suas instituições de saúde especializadas, e de forma imediata, adequada e efetiva, o tratamento psicológico e psiquiátrico de que as vítimas sobreviventes e os familiares das vítimas fatais da Chacina de Messejana necessitem, após consentimento fundamentado e pelo tempo que seja necessário, inclusive o fornecimento gratuito de medicamentos”, diz a ACP. 

A ACP solicita pontos, como a criação de um memorial e o pedido formal de desculpas do estado às famílias. “A ACP teve outros pedidos, como reconhecimento formal de desculpas, a construção de um memorial na Messejana. É uma ação que pede medidas não indenizatórias, medidas que não envolvem dinheiro, mas envolvem reparação em outros termos”, explica a defensora pública do Ceará, Lara Teles, que integra a Rede Acolhe, autora do pedido. Ela explica que a ACP é inspirada em decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos, “por entender que existem, além das indenizações em pecúnia que são necessárias em um caso como esse, mas são necessárias outras medidas também, de caráter simbólico”. 

A Rede Acolhe atende a um grupo de mães e familiares de vítima da chacina e atua como assistente de acusação no processo criminal. “A Defensoria acompanhou o julgamento dos recursos de pronúncia em segundo grau, juntamente com as famílias, garantindo o direito à informação ao que se passa no processo, traduzindo da linguagem jurídica para uma linguagem que seja adequada. É essencial ter acesso à informação”, explica a defensora pública.  “A gente se habilitou como assistente de acusação, então, a Defensoria irá realizar os julgamentos representando as mães, pais e as esposas do Curió no dia do júri, que ainda não tem previsão”, contextualiza. 

 

Ativismo – “A nossa luta começou a tomar sentido e a ganhar espaço”, narra Edna. “Isso tem dado uma força muito grande. Quando você luta com mais pessoas, o seu grito tem mais potência”. A mãe defende a união das famílias em luta por justiça. “Ninguém apagará o meu filho da história. Ele existe e ele vai sempre existir. Eu vejo que meu filho morreu para haver uma transformação, pelo menos, na minha vida. Hoje sou militante dos direitos humanos, defensora dos direitos humanos”, reafirma. 

A exemplo do caso de Edna, a defensora Lara Teles acredita que os familiares se tornaram ativistas de direitos humanos na luta pela justiça, memória e reparação. “Eles transformaram o luto em luta”, resume Lara. Suderli, Edna, Catarina, Maria de Jesus, Jane, Franciluci, Francisca, Ana e Edileudo. Estes são os nomes dos familiares que passaram a se mobilizar socialmente após a morte de seus entes queridos. Uma mobilização social que inicia como processo de ressignificar a dor da perda. 

A coordenadora do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PPDDH), Mary Alves, reforça  a atuação destas famílias em diversas frentes e que em volta delas se criou um grupo de apoio. “A ideia é fortalecê-las enquanto coletivo, enquanto mulheres, refletir sobre o encaminhamento do processo, para que se preparem para diversos cenários. No contexto atual, não sabemos o resultado do julgamento, se as pessoas que foram indiciadas vão ser culpabilizadas”, conta. O PPDDH, programa estadual vinculado a Secretaria de Proteção Social (SPS), trabalha com uma série de medidas preventivas para apoiar a militância destas pessoas. “A ideia é promover reflexões para além da dor”, resume.

“Os movimentos que transformam o luto são muito importantes, como o das Mães do Curió e outros movimentos que temos aqui em Fortaleza, de amigos de vítimas de violência”, analisa Celina Lima, professora da Universidade Federal do Ceará (UFC) e pesquisadora do Laboratório de Estudos da Violência (LEV). “Eles surgem, exatamente, nessa busca de justiça, do entendimento de que as pessoas precisam estar próximas e que, do conflito, podemos fazer algo positivo, uma luta, buscar uma justiça”.  Para a pesquisadora, o sentimento de união e luta faz com que movimentos sociais surjam em situações de violência. 

“Tenho tido muitas lutas. Enfrentamos muitas barreiras. Posso dizer que encontrei a parte da Bíblia que fala: Deus é amor. Encontrei esse Deus no meio das pessoas gays, de negros, de pessoas pobres. Encontrei nessa nossa luta”, sintetiza Edna.