
Combate ao racismo e garantia de direitos: os 15 anos do Estatuto da Igualdade Racial
TEXTO: BIANCA FELIPPSEN
ARTE: VALDIR MURO
Sancionado em 20 de julho de 2010, o Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288/2010) debuta em 2025 como um marco jurídico e simbólico na luta por direitos humanos. Ele estabelece diretrizes para garantir à população negra a igualdade de oportunidades, o reconhecimento dos direitos étnicos (individuais, coletivos e difusos) e o enfrentamento direto ao racismo estrutural no Brasil.
Desde sua criação, o Estatuto ajudou a tirar do papel políticas públicas afirmativas, como a implementação de cotas raciais em concursos públicos, o fortalecimento de ações de reparação, de acesso à educação e a criação de estruturas institucionais voltadas à equidade racial, como o primeiro Ministério da Igualdade Racial, que tem à frente a ministra Anielle Franco, e no Ceará, a primeira Secretaria Estadual da Igualdade Racial, liderada pela professora Zelma Madeira.
Ao longo destes 15 anos, a norma também tem sido usada como referência por diversas instituições do sistema de justiça, entre elas, a Defensoria Pública, como referência para o planejamento de ações afirmativas, atendimento qualificado à população negra, promoção da equidade institucional e atuação articulada com a ampliação de direitos para os movimentos sociais e coletivos antirracistas.
Na Defensoria Pública do Estado do Ceará, os primeiros defensores aprovados pelo sistema de cotas começaram a atuar a partir de novembro de 2023. A Lei das Cotas foi aprovada em 2021 reservando vagas para candidatos(as) negros e negras, quilombolas e indígenas em concursos públicos e processos seletivos da instituição, mas desde 2020 já funcionava como Instrução Normativa, a primeira política afirmativa da história da DPCE. Articulada à época em um movimento liderado pela ouvidora externa da Defensoria, Antônia Araújo, a lei prevê a destinação de 20% das vagas exclusivamente a negros e negras, 5% serão para quilombolas e outros 5% para indígenas.
No último concurso da Defensoria, mais de 12 mil pessoas disputaram as vagas. Entre elas, destacaram-se não apenas por serem aprovados, mas por integrarem a primeira turma de defensores cotistas da história da instituição: Rayssa Cristina, Raul Sousa, Glauber Leitão, Paulo Rocha e Daniela Melgaço, além de Francisco Pankará que adentra como o primeiro defensor indígena da história da DPCE. Estes são os primeiros nomeados entre os cotistas. Posteriormente, o grupo foi ampliado com a chegada de Mike Chagas, Álice Viviany e Suian da Rocha e Silva Lopes.
Eles e elas superaram uma das maiores concorrências do certame: 200 candidatos por vaga, desmontando a ideia equivocada de que as cotas raciais facilitam o ingresso na carreira pública. Pelo contrário, a trajetória desses profissionais evidencia o alto nível de exigência e preparo. “A maioria desses concursos tinha ações afirmativas. Eu optei por elas porque sou um homem negro e vejo minha inscrição como natural. Entendo que represento bem a efetividade dessa política pública. Mas é preciso dizer que nossa visão tem que ser coletiva, não individual. É um interesse público que se relaciona com a ocupação de um espaço e não somente com uma carreira profissional”, avaliou o defensor Paulo Rocha.
As histórias destes novos defensores integraram o especial Frente Negra da Defensoria, lançado em novembro de 2024 pela Secretaria de Comunicação da instituição, que concorre ao Prêmio Nacional de Comunicação e Justiça 2025. Assista aqui um teaser sobre o especial.
Atuação defensorial – Para atender na retaguarda do Estatuto, o Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas (NDHAC) da Defensoria Pública é o espaço responsável por acolher denúncias e acompanhar casos de racismo e discriminação racial e religiosa, promovendo orientações jurídicas, atendimento humanizado e articulação com outras redes de proteção e defesa de direitos. “A promulgação do Estatuto da Igualdade Racial representa um marco jurídico e simbólico no Brasil. É a partir dele que se torna possível exigir do Estado a implementação de políticas estruturais para enfrentamento das desigualdades historicamente impostas à população negra”, afirma a defensora pública e supervisora, Mariana Lobo, do Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas (NDHAC).
Ela recorda um recente caso de uma indenização conseguida em uma grande rede varejista do Estado, graças a legislação que atribui como conduta criminal atitudes racistas. A frase “senhor, aqui não é lugar de pedinte” doeu na alma do assistido que recorreu em uma ação na Justiça cearense, interposta pelo Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas. Nela, o homem relata que o racismo ocorreu em uma loja de supermercados na avenida Aguanambi, em Fortaleza, em 2022. “Na ocasião, ele estava com a esposa no caixa, esperando para pagar as compras, quando foi abordado por uma funcionária do supermercado. Ela disse que recebeu reclamações de clientes de que havia pedintes dentro do supermercado e que ele se enquadrava no ‘arquétipo’ de pedinte”, explica a defensora Mariana Lobo. “Ele era o único negro no supermercado no momento e estava com os braços sujos de tinta, pois trabalha como pedreiro”, detalha.
Para ela, a atitude dos seguranças do supermercado demonstram a faceta do racismo que acomete o País e que adoece milhares de pessoas negras ao serem associadas a condutas criminosas ou de vulnerabilidade. A decisão veio favorável: “ao abordar o autor e o confundir com um pedinte, (a conduta) caracteriza, por si só, um grave constrangimento e que se revelou absolutamente desnecessária, pois em momento algum se provou que o autor houvesse cometido ilícito ou estivesse causando incômodo dentro do estabelecimento ao agir, como se cogitou, como um pedinte”, sentenciou o juiz.
A defensora Luciana Ferreira Gomes, responsável pela Defensoria Civil onde tramitou o processo, avalia como acertada a decisão. “Existe um limite para o qual o estabelecimento pode agir e os excessos devem ser trazidos à tona para melhorar essas abordagens. Lembro aqui o caso do supermercado que levou a óbito a abordagem por um segurança e isso é inaceitável. O estabelecimento pode averiguar o que acontece com cordialidade, mas uma abordagem errada pode causar dano moral e pode abalar a vida e a reputação de uma pessoa e tem sempre que ser lembrado o aspecto seletivo que isso ocorre ao escolher pessoas negras para essas abordagens”, explica.
Políticas institucionais – Em novembro de 2024, a Defensoria Pública do Estado do Ceará lançou o primeiro Comitê de Promoção da Igualdade Étnico-Racial com o objetivo de consolidar práticas institucionais de enfrentamento ao racismo e ampliar as ações afirmativas dentro da própria instituição. “A criação do Comitê reafirma nosso compromisso com uma Defensoria mais diversa, representativa e antirracista. Não basta defender direitos da porta para fora, é preciso transformar as estruturas também internamente. Nosso compromisso com os direitos humanos não termina na atuação defensorial, porque ele começa dentro de casa, exigindo que nossas próprias estruturas reflitam a diversidade que defendemos”, destacou à época a defensora pública geral, Sâmia Farias.
O Comitê foi anunciado pela defensora geral Sâmia Farias em 20 de novembro, em alusão ao Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, com a Instrução Normativa nº 187/2024, que formaliza a existência o grupo. Cabe aos membros do comitê a elaboração de políticas de educação para capacitar defensores e colaboradores da DPCE, bem como a produção de dados científicos sobre a temática. Integram o Comitê: Leandro Bessa, Lara Teles Fernandes Falcão, Lia Cordeiro Felismino, Camila Vieira Nunes Moura, Joyce Ramos De Brito, Jaerbeth Correia, Bruno de Castro Brito, Daniela Melgaço Veloso, Eduarda Paz e Sousa, Francisco De Assis Carvalho Júnior, Mayara Dos Santos Rodrigues Mendes, Mike Douglas Muniz Chagas, Raul De Sousa Neves, Rayssa Cristina Santiago Dos Santos, Taiane Ferreira Peixoto, Jorge Bheron Rocha e Álice Vivianny Vieira Pereira Lima.
“O Comitê existe para ser agente de transformação dentro e fora da Defensoria. Cada pessoa que nós alcançarmos com essas ações, seja dentro ou fora da instituição, vai em algum momento aplicar o que aprendeu e passar esses ensinamentos adiante, para familiares, amigos… Não tenho dúvidas de que a Defensoria será uma referência antirracista dentro e fora do sistema de justiça”, afirma o presidente do Comitê e subdefensor geral do Ceará, Leandro Bessa.
Como ação do Comitê, que é formado por defensores, servidores e acadêmicos, foi elaborada a cartilha “E eu sou o quê?”, um material interno voltado à capacitação das equipes técnicas sobre letramento racial, relações étnico-raciais e enfrentamento do racismo institucional. “A cartilha nasce como um convite à reflexão. Ao provocar uma pergunta que muitas vezes é negligenciada, queremos estimular a escuta ativa, o reconhecimento das identidades e o compromisso ético com uma atuação antirracista em todas as esferas da Defensoria”, disse o subdefensor geral. Ao longo do ano de 2025, ocorrem capacitações, promovidas pela Escola Superior, sobre a temática.
Entre a lei e a realidade – Apesar dos avanços, os indicadores sociais evidenciam a persistência das desigualdades. A maioria da população brasileira se autodeclara negra ou parda, mas ainda enfrenta exclusões graves nos campos do trabalho, da educação, da saúde, da moradia e do acesso à justiça. Diversas pesquisas apontam, por exemplo, que o perfil majoritário da população carcerária, das vítimas de violência policial e das pessoas em situação de rua é composto por homens e mulheres negras.
Em levantamento divulgado pelo Centro de Estudos e Dados sobre Desigualdades Raciais (Cedra) evidencia que, entre 2012 e 2023, a desigualdade racial no Brasil persiste de forma estrutural, com avanços lentos em áreas como renda, empregabilidade e cargos de liderança. Em média, as pessoas negras ganharam 58,3% menos do que ganhavam as brancas ao longo dos 11 anos.
Na educação, o cenário repete-se. As desigualdades raciais na educação aumentaram no Brasil durante a última década, especialmente após a pandemia. Em 2023, dos jovens de 14 a 29 anos que não completaram o ensino médio, seja por terem abandonado a escola antes do término desta etapa, seja por nunca a ter frequentado, 71,6% eram negros e apenas 27,4% eram brancos, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua. Noutra vertente, o estudo “Diagnóstico do abandono e da evasão escolar no Brasil” aponta que a chance de um jovem preto ou pardo de 20 a 24 anos estar fora da escola sem ter concluído o ensino médio era de 55% maior do que a de um jovem branco,. E os motivos são muitos: trabalho, problema de saúde, trabalho doméstico, disponibilidade de vaga e escola próxima, gravidez ou falta de motivação.
Combater essa desigualdade exige políticas públicas robustas. Assim, ao completar 15 anos, o Estatuto da Igualdade Racial reafirma ainda sua urgência. Não basta ter uma lei no papel: é preciso que ela pulse nas políticas públicas, esteja no olhar de quem atende, na cor de quem defende, no julgamento de quem decide e nas escolhas de quem governa. Quinze anos depois, a lei continua sendo um ponto de partida e não um ponto final.