Posso ajudar?
Posso ajudar?

Site da Defensoria Pública do Estado do Ceará

conteúdo

Dia da Consciência Negra: amor preto cura e precisa ser exaltado

Dia da Consciência Negra: amor preto cura e precisa ser exaltado

Publicado em

Amar. Apaixonar-se. Dividir uma vida com alguém. O amor é condição única para a existência humana, que envolve inúmeros sentimentos e subjetividades das mais íntimas e profundas do ser. Porém, algo que deveria ser visto como dádiva é percebido por muitos com dor e negatividade.

Por que isso acontece? É preciso, primeiro, entender que nem todos têm a chance ou o direito de vivenciar o amor de forma positiva. A resposta para isso está ao nosso redor. Vivemos em uma sociedade marcada por desigualdades e opressões. Em resultado, o desfrute do amor acaba se tornando raro, muitas vezes, apreciado em sua completude por camadas mais privilegiadas.

Desta forma, tendo como base a corrente da expoente ativista e escritora negra norte-americana bell hooks, a vontade de amar ganha caráter político para a população negra. Em seu livro “Tudo sobre o amor”, bell hooks reflete que o sentimento deve ser visto não como uma fantasia, mas como uma ação – uma potência que fure bolhas, supere a violência racista e transforme o ódio e o cinismo em um lugar de esperança nas vozes de jovens e velhos.

Neste mês de novembro, voltado a valorizar o povo preto e refletir sobre sua posição na sociedade, protagonizamos o amor preto. A pauta exige sensibilidade para ser compreendida. Por vezes do avesso. É do lado da solidão negra que pensamos sobre a necessidade do amor preto. O amor passa a ser reivindicado como ferramenta de afirmação para a identidade racial.

A situação pode ser constatada com os seguintes questionamentos: Quantos casais formados por pessoas negras você conhece? Por que as mulheres negras são tão comumente vistas sozinhas, chefiando famílias? Você conhece uma pessoa negra que foi vítima de um relacionamento tóxico ou marcado pela agressão? Segundo o dossiê Mulheres Negras e Justiça Reprodutiva, produzido pelo instituto Criola, a cada semana, 12 mulheres negras são vítimas de violência psicológica e moral no Brasil. E, a cada dia, duas são vitimadas pelo feminicídio.

O fator também se estende à infância. Por que os acolhimentos registram em quantidade maior crianças e adolescentes pardos e pretos? E na escola, balada ou universidade, quem é mais provável de sofrer uma rejeição amorosa: jovens brancos ou negros? Essa é a reflexão que permeia a obra de bell hooks. 

Logo, o dizer “amor não tem cor” é um grande mito, pois invisibiliza as fragilidades e dissabores vividos por uma pessoa negra que deseja amar e ser amada dentro de uma sociedade excludente. Um dos fatores que excluem a negritude da prática amorosa é o racismo. Filósofo, professor universitário e pesquisador de questões raciais, Renato Noguera explica que o racismo colonial, advindo da supremacia do identitarismo branco, é o obstáculo que dissocia o amor da identidade negra e reduz à condição de objeto.

“O racismo colonial é responsável pela ‘coisificação’ das pessoas negras. As fantasias perversas da cultura branca ocidental estabeleceram que um corpo negro só poderia ser ‘amado’ se fosse objetificado. Numa sociedade estruturalmente racista, o narcisismo patológico das pessoas brancas, tal como argumenta Frantz Fanon, produz um padrão social em que o amor se organiza de modo racializado. Foi o identitarismo branco que racializou as relações afetivo-eróticas. O estado de hipervigilância e medo crônico do imaginário branco que criou essas diferenças”, explica.

Ter o corpo preterido, não preferido. Ser fonte constante de julgamentos. Ter comportamentos e percepções mudadas para agradar os outros. Uma das novas vozes da cena musical brasileira, o rapper Rico Dalasam, na canção Guia de Um Amor Cego, destaca o lugar de solidão encontrado por muitos jovens pretos e negros em suas relações amorosas. “Quando garotos negros amam, quando garotos pretos se amam. Quase sempre se inventou um jeito. Me percebi exceção cada vez que fui amado”.

Para Renato Noguera, também autor da obra “Por que amamos”, racializar o amor é uma forma de gerar questionamentos dentro do sistema racista – no qual privilegia pessoas brancas, geralmente vistas como únicos sujeitos dignos de afeto. Logo, segundo Renato, para desconstruir essa realidade excludente é preciso que a população branca se responsabilize pelo enfrentamento do racismo. 

“O combate ao racismo pelas pessoas brancas deve ser a pauta para a transformação desse cenário. O racismo adoece as pessoas brancas também. Elas acabam se desumanizando também. Logo, cabe às pessoas brancas, sujeitos beneficiados pela discriminação racial, se posicionarem diante desse cenário violento. Nesse contexto, a amorosidade negra é uma forma de resistir ao racismo. Diante do fetiche da hipersexualização negra, o amor humaniza esses corpos”, explica Renato.

Os desafetos, além de prejudiciais à saúde mental, influenciam o processo de entendimento de ser negritude. Ao sentir a rejeição, a dor pode evoluir para o ódio direcionado à própria cor de pele, ao corpo e demais individualidades. E, quando se é aceito, o afeto recebido é visto, muitas vezes, como indigno e duvidoso, prendendo em uma lógica punitivista e maligna.

Também entusiasta das percepções de bell hooks sobre o amor, o professor Renato Noguera interpreta que é preciso definir o amor preto como um exercício efetivo de restauração diante o racismo. “Uma vida negra em processo de cura é uma revolução. O amor preto exige consciência afetivo-racial. Como diz a psicanalista Neusa Santos Souza: é preciso tornar-se negro. E, se o amor preto tem aspectos sociais, psicológicos, mas também uma dimensão política, o amor preto é uma pauta necessária, porque sem ele não podemos passar a limpo a história do Brasil”, afirma.

Justiça Racial

No âmbito legislativo, o amor pode ser considerado, sim, um direito constitucional. “A Constituição Brasileira admite a possibilidade de existirem outros direitos além dos explícitos no rol constitucional, desde que decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados. Assim, na medida em que é um sentimento almejado pelo indivíduo para a sua plena realização como ser humano, pode sim ser considerado um direito fundamental, sob a perspectiva material”, instrui o assessor de planejamento e controle da DPCE, defensor Leandro Bessa.

Ele explica que no Estado Democrático de Direito não podem existir privilégios ou discriminações que não estejam fundadas em um valor ou interesse constitucional. Entretanto, a fruição deste direito ainda não é universal. O Brasil é marcado por uma série de desigualdades raciais, desde o acesso à educação e no âmbito jurídico, inviabilizando a criação de políticas públicas mais efetivas para se garantir a justiça racial.

A existência de limites à efetividade desse e de outros direitos, segundo Leandro, está ligada a um preconceito constitutivo da própria sociedade brasileira. A população negra foi inserida em nossa sociedade através da escravização, permitindo a legitimação da violência sobre os corpos negros. Mesmo com os avanços normativos na busca pela igualdade, o defensor adiciona que é necessário a construção de um real enfrentamento ao racismo, mal que impede a distribuição igualitária de oportunidades e direitos ao negro brasileiro.

Para bell hooks, o amor, pensado como ação, pode se tornar uma importante ferramenta para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária. O amor abre alas para a construção de uma “ética amorosa”. Nela, os seres humanos que encontram e centralizam o amor em suas vidas tornam-se verdadeiros agentes para a destruição de qualquer tipo de violência, desamor e opressão. 

Para Leandro, quando uma rede de apoio é construída, a sociedade se torna mais plural e, consequentemente, mais capaz de enfrentar seus desafios e obstáculos e permitir o desenvolvimento de novas possibilidades de afeto e modos de vida. A atividade defensorial também se constitui como uma importante ferramenta para a efetivação dos direitos humanos e coletivos. 

“A Defensoria tem de atuar ativa e proativamente perante os coletivos de direitos das pessoas negras, assim como acionar o Judiciário, em todos os seus graus, para impulsionar ações afirmativas estatais e particulares que promovam a real inclusão, tanto satisfazendo a justiça distributiva, quanto compensatória. Somente assim poderá contribuir verdadeiramente para saldar parte da dívida histórica que temos com a população negra, assim como possibilita que ela passe a ocupar postos de poder, em proporção semelhante à que representa na população geral”, defende Leandro.

 

Amor como cura

A defesa e visibilidade da afetividade negra é transformadora e impacta as individualidades e coletividades dos envolvidos na rede de afeto. Conheça 3 histórias de pessoas negras que encontraram no amor preto uma fonte de cura e libertação.