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“Empregar pessoas trans é o primeiro passo, mas precisam ser dados outros para romper com a cis-centralidade”

“Empregar pessoas trans é o primeiro passo, mas precisam ser dados outros para romper com a cis-centralidade”

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Ser uma pessoa transgênero no Brasil é resistir a uma realidade que se encarrega de erguer muros em vez de pontes. O que se vê ainda são vidas abreviadas, renegadas, marcadas pelas sombras do preconceito e da violência. Porém, há sempre lugar para a resistência e a esperança. Fran Costa é uma das muitas vidas travestis que lutam dia a dia pelo digno direito de terem sua existência reconhecida e seus direitos garantidos.

De fala forte e ativa, Fran vem (re)escrevendo sua própria história em busca de seu lugar no mundo como travesti. A mulher que se tornou hoje nasceu somente aos 29 anos, quando decidiu reivindicar sua identidade. “Eu me entendi diferente desde muito cedo, mas só pude sair desse casulo depois da vida adulta. Já faz dez anos da minha transição, mas oficializar isso [a retificação oficial] é sempre uma dificuldade imensa. É difícil, porque é um tabu. Como é que a família vai ver isso? Será uma preocupação?”, relata.

Ela procurou investir na educação: formou-se em Engenharia de Pesca e fez mestrado em Desenvolvimento e Meio Ambiente. Durante o período, teve a vida atravessada pelas vivências das comunidades campesinas e pesqueiras do interior. Porém, com a transição, as portas, antes abertas, fecharam-se. “Depois da transição, o acesso ao mercado de trabalho, sobretudo na minha área, ficou muito mais restrito. Já é restrito para todas nós, mulheres, independentemente se é cis ou trans. Mas quando se é trans, a coisa fica muito mais restrita. De lá pra cá eu saí, pois já não consegui mais trabalho na área das Ciências Agrárias”, reflete.

Na busca pela sobrevivência, Fran acabou imersa na informalidade. Um bico ali, outro bico acolá. Trabalhos bons, outros ruins. Foi um pouco de tudo. Mas, em cada trabalho que assumia, nunca deixou de nutrir seu desejo mais forte de atuar na defesa dos direitos humanos. Mais cedo ou mais tarde, encontraria a Defensoria por meio dos laços formados dentro dos movimentos sociais.

A partir de um convite aceito sem receios, Fran iniciou sua trajetória na instituição em julho do ano passado, assumindo a vaga de atendimento no Núcleo Especializado em Execução Penal (NUDEP). O papel dela é na triagem. Com proatividade e gentileza, costuma atender a dezenas de ligações por dia, fornecendo sempre respostas às dúvidas de familiares que incessantemente buscam informações de seus entes – filhos, esposos, pais e tios – em cumprimento de pena na Região Metropolitana de Fortaleza. A oportunidade é sinônimo de orgulho e admiração para Fran, que, desde muito cedo, teve que tomar as rédeas da vida.

“Trabalho com pessoas das quais eu admiro muito pela atuação, pelo amor e pelo respeito, pelo carinho que tem pelo trabalho. Essas pessoas têm a minha alta admiração e eu me espelho nelas para poder fazer o meu trabalho. Para quem pegou alguns trabalhos bons e outros trabalhos ruins, estar num espaço privilegiado como esse, a Defensoria, de fato, foi um ponto de encontro e reencontro”, enaltece.

A chance também trouxe uma nova narrativa para a vida de Fran. Lidar com a situação de pessoas encarceradas é refletir sobre as dores de alguém que sempre foi invisibilizada e tratada à margem da sociedade. E, no final, ser capaz de construir perspectivas.

“Quando eu faço meu atendimento aqui aos familiares e as próprias pessoas que estão cumprindo pena, eu olho pra mim mesma dentro dessa sociedade, que é, pelo menos no meu olhar, branca, cisgênera, hetero normativa. Enquanto você tá fora desse circuito, tendo em vista que o sistema prisional é composto em sua maioria de pessoas negras. Eu sei o que é viver à margem, à margem dos direitos, à margem da dignidade. É desse sentimento de empatia e solidariedade que eu faço o meu trabalho, partindo desse lugar de empatia e solidariedade porque, de uma forma diferente, evidentemente, eu sei o que é passar por isso. O quanto faz diferença você chegar num espaço, ser acolhida, ser ouvida e ter as suas demandas encaminhadas”, desabafa.

Quando indagada sobre o futuro, Fran responde que ainda não tem planos. O momento que vive agora foi uma grata surpresa da vida. Alcançar a empregabilidade encontrou nela uma chance de realizar seus maiores sonhos. Ainda, o trabalho na Defensoria é apenas seu itinerário inicial. Muitos outros virão.

“Acho que o fato da Defensoria ter colocado o projeto ou uma ação política de contratação para pessoas trans é um avanço. As instituições, as organizações e as empresas também precisam abraçar esse desafio, mas tem que ir além disso. Por quê? Porque as instituições ainda são cis-normativas, ainda são cis-centradas. Vem esse sujeito trans que quebra essa cis-normatividade, que faz com que tudo precise ser repensado, as relações repensadas, inclusive as relações laborais. Empregar pessoas trans é o primeiro passo. Precisa ser dado outros passos para que a gente possa romper com essa cis-centralidade e construir relações mais transcentradas mesmo. Precisamos começar de algum lugar. Empregar pessoas trans não é o fim, é o começo. É o começo do percurso”, afirma Fran, ao enxergar a importância da sua presença no lugar que está hoje e de muitos outros que, esperançosamente, virão.