Furtos de bagatela são emblemáticos para demonstrar como funciona o instituto da insignificância na prática
Enquanto mais de 20 milhões de brasileiros passam fome, um homem foi preso por supostamente furtar um isqueiro, lâmina de barbear, cola, dentre outros produtos. O episódio aconteceu em Pacajus, Região Metropolitana de Fortaleza. Mas sua história está longe de ser exceção. D.G.C., de 43 anos, é inspetor de qualidade e possui superior incompleto, no dia do ocorrido, foi apreendido por populares e agredido a pauladas, tendo seu braço quebrado.
A prisão de D.G.C., que não tinha antecedentes criminais, arrastou-se por uma semana. No dia 21 de junho de 2021, a Defensoria Pública Geral do Estado do Ceará (DPCE) pediu a concessão de liberdade provisória ao homem sem imposição de medidas cautelares, por estar ausente a tipicidade material, ou seja, lesão e/ou ameaça de lesão ao meio jurídico, além de pequena monta dos valores supostamente subtraídos. A defensora pública Lara Teles, que atuou no caso, dá maiores detalhes.
“É importante destacar que a própria vítima narra que a subtração foi de miudezas e, nem sabe ao certo, o que foi furtado de tão miúdo e insignificante. A diferença é que, nesse caso, o acusado se diz inocente e que não foi responsável por essa subtração. Assim, serão duas defesas durante o processo. Alegar a insignificância do furto para que ele não seja processado por esse crime e defender sua inocência. Estamos aguardando a conclusão do inquérito policial”, contextualiza a defensora. A morosidade do inquérito faz com que a pessoa tenha sua vida ‘congelada’ a mais de nove meses, aguardando os próximos capítulos.
Existe uma norma, que não é obrigatória, que orienta juízes a desconsiderar casos em que o valor do furto é tão irrisório que não causa prejuízo à vítima do crime. Comida, sucata, produtos de higiene pessoal e ínfimas quantias em dinheiro, por exemplo, podem ser considerados insignificantes pela Justiça. O princípio da insignificância, é baseado na lógica em que existem certas condutas que, embora se enquadrem na letra da lei penal, produzem consequências tão pequenas, que não seria razoável a sua aplicação. De acordo com a jurisprudência do Superior Tribunal Federal (STF), tal princípio deve preencher quatro requisitos para serem aplicados, estes por sua vez são cumulativos: 1) mínima ofensividade da conduta do agente; 2) ausência de periculosidade social da ação; 3) reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e 4) inexpressividade da lesão jurídica.
Outro caso de insignificância penal atendido pela Defensoria ocorreu em Pacatuba. A assistida foi representada pelo defensor público Guilherme Queiroz Maia Filho, atuante na 1ª Vara Criminal. Ele conta que a mulher trabalhava em uma indústria de calçados e quando estava saindo do estabelecimento os seguranças realizaram a vistoria padrão nos funcionários e encontraram uma sandália infantil em sua bolsa. A sandália foi devolvida à empresa, mas J.O.S., de 49 anos, acabou levada à delegacia e presa em flagrante.
O defensor Guilherme Queiroz explica que os furtos de pequena monta são emblemáticos para demonstrar, de forma cristalina, como funciona o instituto da insignificância na prática. “Com o recebimento da denúncia, apresentei resposta à acusação, ocasião em que pugnei pelo reconhecimento da insignificância. O magistrado encaminhou os autos ao Ministério Público do Estado (MPCE) para manifestação, entendendo o promotor do caso, de forma, ao meu ver, equivocada, que o fato era considerado crime, não sendo, assim, cabível a absolvição sumária”, explica.
“O enquadramento dado pelo membro do MPCE foi unicamente formal, não analisando, de forma básica ou genérica, a lesão jurídica realmente provocada. Apontei que os valores, no mercado, eram insignificantes, sendo agravado pelo fato de que a fábrica produzia o bem com valor consideravelmente menor que o empregado no mercado. Mesmo com tais considerações, o magistrado entendeu que o bem não foi materialmente comprovado em relação ao valor e o processo continuou. Apenas para demonstrar o prejuízo, a ação foi ajuizada em agosto de 2014, estando em sua fase inicial, aguardando ainda designação de audiência”, acrescenta. Vale destacar que o processo estava parado e ela está cumprindo as medidas cautelares há oito anos, maior que o possível em caso fosse condenada. O defensor já solicitou um pedido de revogação.
O Código de Processo Penal leva em consideração dois tipos de furtos, ambos analisando a maneira como a ação foi cometida. O primeiro é o furto simples, com pena de um a quatro anos, e o segundo é o furto qualificado, que pode levar o indivíduo a cumprir de dois a oito anos de pena. De acordo com o defensor, logo após o suspeito ser detido em flagrante pelo furto é aberto um inquérito policial contra a pessoa, depois da audiência de custódia, o caso vai para análise do MPCE. Nessa etapa, o promotor pode aplicar o princípio da insignificância e arquivar o caso ou oferecer a denúncia.
Os defensores, no entanto, corroboram que esses casos que envolvem furtos de bagatelas – que são pequenas quantias ou coisas irrelevantes – ajudam a abarrotar tribunais superiores, aumentando a lentidão da Justiça. “Além do aumento do número de encarcerados decorrentes, inclusive, de outros processos, a lentidão processual é agravada por processos que sequer deveriam estar em questionamento (no caso da insignificância). O fato é que isso gera a prescrição de inúmeros outros casos, além da não análise de situações graves que acabam sendo preteridas pela própria quantidade de processos”, finaliza Guilherme Queiroz.
Essa é a terceira pauta da Série Por tão pouco: O crime de bagatela e a justiça social com o objetivo de discutir os desdobramentos de prisões que não deveriam existir por serem decorrentes de casos cujo tratamento deveria ser social e não jurídico. As pautas corroboram para o Dia da Justiça Social dia 20 de fevereiro, data em que se relembra a reflexão sobre o enfrentamento da pobreza, a discriminação, o desemprego e de qualquer outra forma de exclusão ou marginalização.