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Legítima defesa da honra, machismo e plenitude da defesa 

Legítima defesa da honra, machismo e plenitude da defesa 

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Em 30 de dezembro de 1976, a socialite mineira Ângela Diniz estava decidida a terminar o relacionamento conturbado que ela tinha com Raul Fernando do Amaral Street (Doca Street), seu companheiro. Durante discussão do casal, ela foi morta a tiros por Doca, em casa na Praia dos Ossos, Búzios (RJ). Quatro anos depois, em 1980, o Tribunal do Júri se reuniu na cidade de Cabo Frio, no Rio de  Janeiro, para julgar o acusado. O jurista Evandro Lins e Silva, que atuou na defesa do réu, utilizou, ali, a tese da “legítima defesa da honra” para justificar o crime. Naquele primeiro julgamento, Doca foi absolvido. Tal defesa reverberou bastante à época e segue provocando discussões passado mais de 40 anos. 

Nos últimos dias, a tese voltou a ter visibilidade por outra razão: o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou, em plenário virtual, a constitucionalidade da tese “legítima defesa da honra”, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 779. Na sexta-feira, 12, o STF decidiu, por unanimidade, considerar a legítima defesa da honra inconstitucional em casos de feminicídio. A defesa não consta no Código Penal, mas ganhou força em tribunais do júri, em casos de feminicídio, ao longo da história. A decisão do STF também divide opiniões: mesmo considerando um argumento misógino e machista, o Supremo teria como resolver essa questão, vetando a tese?  

“Solução simples para problema complexo não existe”, resume Alice Santos, defensora pública de Pernambuco e administradora do Instagram @bruxasdoplenario. Ela é lotada em varas do júri e já chegou a atuar na defesa de quatro acusados de feminicídio. Rejeita o conceito e nunca usou a tese da legítima da honra. O primeiro caso foi o de José, que matou Verônica, sua ex-companheira, no interior de Pernambuco. “O mundo machista é o funcionamento normal da estrutura do Estado, das instituições. Então, o Estado não vai querer se dar ao trabalho para implementar políticas públicas para educar homens e mulheres na sociedade”, avança. Alice participou de conversa ao vivo que ocorreu na quinta-feira, 11, no Instagram da Defensoria Ceará, com tema “Feminicídio, legítima defesa da honra e direito de defesa”. Quem conduziu o momento foi a defensora do Ceará, Renata Amaral. 

“Desde a implementação do crime de feminicídio, em 2015, até 2019, o número de mulheres mortas diminuiu no Brasil, as que não são em contexto de gênero. Já o número de mulheres mortas em contexto de gênero, no crime de ódio, aumentou. E, entre estas mulheres, 72% são negras e periféricas. Quando você olha para o outro lado sobre quem são os homens que estão sendo encarcerados por mais tempo, mais uma vez, mais da metade, são homens negros e periféricos”, contextualiza, para explicar que a legítima defesa da honra faz parte de uma engranegam social machista e patriarcal. Para ela, ações mais profundas, com políticas públicas para homens e mulheres seria mais eficaz do que o STF tornar inconstitucional a tese da legítima defesa da honra. 

“Você não iria usar a legítima defesa da honra na sua tese, pelo seu bom senso, pela sua responsabilidade como profissional. A gente tem, sim, essa responsabilidade. Nós, profissionais, devemos ter essa cautela, assim como o Ministério Público e o juiz, em aceitar ou não a fala de cada uma das partes processuais” , comenta Renata. “Muitas Verônicas vão continuar a morrer”, arremata. 

O artigo 25 do Código Penal define legítima defesa: “Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”. Mas a legítima defesa da honra é um argumento extrajudicial, portanto, não consta no Código Penal. É parte da retórica em um tribunal do júri. 

Em sua fala, o relator do julgamento, ministro  Dias Toffoli, considerou que a tese permite que a violência doméstica e o feminicídio continuem a ser aceitos na sociedade e, assim, perpetuados “Não obstante, para além de um argumento atécnico e extrajurídico, a ‘legítima defesa da honra’ é estratagema cruel, subversivo da dignidade da pessoa humana e dos direitos à igualdade e à vida e totalmente discriminatória contra a mulher, por contribuir com a perpetuação da violência doméstica e do feminicídio no país”, considerou o. Para ele, a legítima defesa da honra permite que a violência doméstica e o feminicídio continuem a ser aceitos na sociedade e perpetuados”, defendeu em seu voto. 

A defensora pública do Ceará, Liana Lisboa, concorda com as colegas ao considerar que a  tese defensiva da legítima defesa da honra é, manifestamente, machista e misógina. “Ela parte de uma compreensão de que a honra masculina vale mais do que a vida da mulher. Então, foi uma tese construída ao longo de anos, a partir dessa perspectiva. E que, felizmente, tem sido pouco utilizada. Caiu em desuso, depois que a gente começou a ter um enfrentamento do movimento feminista em relação a essa tese defensiva”, relata.  “Em última análise, é isso: que a honra masculina justificaria a retirada da vida da mulher que teria “violado” essa honra? Ela tem um grande problema conceitual e jurídico”. 

O debate, considera Liana, sempre foi muito polêmico, justamente, porque, o que se pontuava era: “limitar a possibilidade de defesa em plenário viola ou não viola a plenitude de defesa?”, questiona Liana.  “A gente tem como princípio norteador da atuação em plenário a plenitude de defesa. Então, o plenário do júri é um momento em que você pode trazer para os jurados argumentos jurídicos e extrajurídicos”, narra. “O grande debate, então, era: é possível se proibir que um defensor ou defensora, um advogado ou advogada, sustente uma tese que é extrajurídica ou se você pode proibir ou não que o profissional use  essa defesa, sob o  argumento desta tese é violadora de direitos humanos das mulheres. É sobre isso que o STF decide”.