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Mulheres trans, moradoras de periferia e com idade até 29 anos são público majoritário de mutirão da DPCE

Mulheres trans, moradoras de periferia e com idade até 29 anos são público majoritário de mutirão da DPCE

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Têm perfil muito bem estabelecido as 189 pessoas beneficiadas pelo Transforma, o primeiro mutirão da Defensoria Pública de retificação de nome e gênero nas certidões de nascimento de indivíduos transmasculines, mulheres trans e travestis. A força-tarefa aconteceu em 30 de junho e foi marcada pela entrega de novos 172 documentos em Fortaleza, Sobral e Cariri. Outros 17 foram disponibilizados nos dias seguintes porque os titulares não puderam comparecer às solenidades.

O público majoritário do mutirão foi composto por mulheres trans e travestis (71%) com idade até 29 anos (77%) e, no caso de Fortaleza, que concentrou dois terços de toda a demanda do Estado, oriundas de bairros periféricos (80%, com Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) baixo ou muito baixo, conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)).

Isso implica em 29% do público atendido no mutirão ter sido de homens trans e 44% pessoas com idade entre 30 e 59 anos. Sobral somou 17% de todas as novas certidões, enquanto o Cariri representou 12% dos documentos entregues. Na capital, os três bairros com mais representantes no Transforma têm IDH muito baixo. São eles: Granja Portugal (7, sendo 1 homem trans e 6 mulheres trans ou travestis), Barra do Ceará (6, sendo 2 homens trans e 4 mulheres trans ou travestis) e Jangurussu (5, sendo 1 homem trans e 4 mulheres trans ou travestis).

“Pessoas trans são historicamente excluídas e vulnerabilizadas em direitos básicos. Ir por conta própria ao cartório para pedir a retificação, mesmo sendo algo garantido por lei, pode ser algo de difícil acesso e simbolicamente violento para elas, além de demandar recursos financeiros e uma vasta documentação. Nosso mutirão foi uma ponte entre essa burocracia e a garantia de direitos dessas pessoas. Agora, elas existem de fato e de direito. Podem exercer cidadania. Podem ser quem de fato são”, afirma a defensora geral Elizabeth Chagas.

Nenhum homem trans do mutirão em Fortaleza mora em bairro de IDH alto ou muito alto. Três vivem em localidades com IDH médio (São Gerardo). Já entre as mulheres trans e travestis, 11 residem em bairros de IDH médio (Centro, 4; Joaquim Távora, 3; e Papicu, Parque Manibura, Cidade dos Funcionários e Cidade 2000, com 1 em cada) e somente 1 vive em região com IDH muito alto.

Onze pessoas contempladas no mutirão da capital têm residência hoje em cidades da Região Metropolitana de Fortaleza, sendo seis homens trans (2 em Horizonte e 4 em Caucaia) e cinco mulheres trans ou travestis (4 em Caucaia e 1 em Maracanaú). Elas receberam as novas certidões porque as originais haviam sido expedidas em cartório na capital.

Presidente do Instituto Brasileiro de Transmasculinidades (Ibrat), o antropólogo Kaio Lemos diz que o expressivo número de certidões de nascimento retificadas com a assistência da Defensoria no Transforma delineia a existência dessas pessoas e aponta para uma demanda real bem maior, de quem, por diversas razões, não conseguiu participar do mutirão.

“A identidade não é só autoafirmativa, mas socialmente exigida. Então, ter um documento retificado significa muito. Mas muitas pessoas trans vivem dentro de uma casa que não as aceita. Muitas são impedidas de realizarem essa retificação; vivem numa situação de assujeitamento. E, muitas vezes, as pessoas não passam por isso porque não se sentem seguras socialmente, mesmo que hoje, depois de muita luta, o Estado ceda às nossas demandas”, afirma Kaio.

Ele teve a certidão retificada em 2018, ano no qual a alteração passou a ser feita sem a necessidade de uma decisão judicial, e atribui a contextos sociais, de violência e de subsistência o fato de a população transmasculina buscar a mudança do nome e gênero mais cedo do que mulheres trans e travestis. No mutirão da Defensoria, foram recorrentes participantes com 18 anos. Para menores de idade, a alteração só é feita com o aval dos pais/responsáveis e sentença judicial favorável.

“A população transmasculina mais velha já está muito assujeitada à ideia da biologia para fazer um procedimento como esse. Muitos não vivenciam esse processo por isso. As pessoas transmasculinas mais jovens estão se desconstruindo da ideia biológica colocada como norma. Muitas travestis e mulheres trans, no entanto, já vivem um processo de violência profundo desde crianças. E isso é fruto do machismo e do patriarcado, que lhes negam o corpo e a identidade. Muitas delas acabam vivendo um processo de assujeitamento e passam a ter alguma liberdade a partir dos 30 anos. Sem apoio em casa, muitas vão buscar primeiro a sobrevivência de vida, alimentar, de abrigo, e muitas vezes nem sobra tempo de buscarem esse direito [da retificação]”, acrescenta Kaio.

Na opinião dele, a condição de travestis é a mais violenta e explícita de todas e as leva a um desgarramento mais precoce. “Travestis e mulheres trans não se sentem seguras nesses processos, porque sabem que vão ficar ainda mais vulneráveis à violência. Nem sempre esse procedimento é libertador, porque a gente precisa ainda de outras atitudes do Estado para desconstruir violências que ocorrem às nossas identidades e aos nossos corpos todos os dias”, finaliza.

Para a presidenta da Rede Nacional de Pessoas Trans, Tathiane Araújo, o mutirão da Defensoria cumpriu um papel que deveria ser de políticas públicas regulares. Uma lacuna do Estado que ela aponta ao evidenciar o extermínio dessa população no Brasil. Indivíduos transmasculines, mulheres trans e travestis vivem, em média, 35 anos no país, que lidera o ranking mundial de assassinatos dessa comunidade.

“Os números expressivos do mutirão são um reflexo do quanto pessoas trans não têm facilidade no acesso à justiça. Nós sofremos uma série de violações de direitos que fazem a gente ter essa expectativa de vida tão baixa e complexidades que fazem com que muitas vivam à margem e não se apropriem de mecanismos mínimos para compreenderem os próprios direitos. Numa sociedade como a nossa, machista, onde o homem tem privilégios, a gente vê que, mesmo existindo preconceitos contra homens trans, há ainda maiores exclusões e violência cometidas contra mulheres trans e travestis”, pontua Thatiane.

Ela reforça a importância da retificação da certidão de nascimento como meio de alterar todos os demais documentos e, assim, pessoas trans e travestis terem como exercer a própria cidadania. Hoje, muitas pessoas trans e travestis sequer conseguem completar os estudos, tamanha é a violência que sofrem no ambiente escolar – a começar pelo nome, comumente desrespeitado.

“Nós estamos à margem de muitas discussões e temos pesquisas que demonstram essa deficiência na escolaridade. São muitas as curvas de preconceito. Então, é real que o machismo opera em todas as mulheres e sobre mulheres trans não seria diferente. Por isso, ações como o mutirão da Defensoria vêm para promover ações inclusivas, para minimizar a lacuna que o Estado deixa e é refletida nos números, na situação social da nossa população”, frisa a presidenta da Rede Trans.

Na opinião da primeira travesti doutora do Brasil, Luma Andrade, há uma demanda reprimida para retificação da certidão que precisa ser alcançada por novos mutirões e campanhas educativas. “Várias pessoas trans têm idade superior a 29 anos e devido à vivência tradicional, uma parte mais conservadora, acabam nem querendo a modificação do nome. Outras sequer têm conhecimento de que podem. Na escola, por exemplo, não falam sobre nome social. Mas também é preciso considerar a classe social dessas pessoas. Muitas delas não têm condições de pagar as despesas para a mudança e não sabem que a Defensoria faz esse trabalho de forma gratuita”, diz a professora.

Luma alerta para questões geracionais e políticas em torno da alteração documental. De acordo com a pesquisadora, pessoas trans mais velhas, que atuaram em causas sociais, têm uma percepção diferente de indivíduos mais novos, distante das articulações por causas coletivas, e, por isso, sem um olhar holístico para a problemática.

“Existe uma disputa. Não é algo consensuado. Por isso, a juventude tem uma facilidade maior. Os homens trans, eu entendo, na minha concepção enquanto pesquisadora, que eles não procuram mais devido à carteira de reservista do Exército. A partir do momento que mudam o gênero nos documentos oficiais, eles são obrigados a terem uma. E isso pode ser um constrangimento grande. Mas é importantíssimo divulgar que existem mutirões de retificação. Porque muitas pessoas desejam e o desejo delas tem que ser respeitado. E o ideal é que isso aconteça de fato de forma gratuita, como a Defensoria faz, porque a população é extremamente vulnerável. Têm pessoas trans que só começam a ter felicidade na vida quando mudam o nome. É você dar garantia à cidadania dessas cidadãs e desses cidadãos”, pontua Luma Andrade.

SERVIÇO
É possível retificar a certidão de nascimento com a assistência da Defensoria Pública em qualquer período do ano, independente da realização de mutirão. Para isso, em Fortaleza, basta procurar o Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas (NDHAC). No Interior, é só ir à sede da DPCE. Em ambos os casos, é preciso apresentar uma lista de documentos e certidões que a lei exige. Para saber qual, clique aqui.

Supervisora do NDHAC, a defensora pública Mariana Lobo explica que a alteração na certidão de nascimento é princípio constitucional. Trata-se do direito à personalidade, inerente a todo e qualquer ser humano. Desde 2017, a Defensoria atuou na retificação de 701 documentos de pessoas trans e travestis.

“Essas ações são nossa rotina. E nunca é demais dizer que não se trata de um capricho, mas algo que, quando não é garantido, pode gerar sofrimento psicológico, constrangimento social e privação de outros direitos a essas pessoas. Alterar a certidão de nascimento é o começo de uma nova vida. É a garantia do direito de a pessoa ser reconhecida e tratada como deseja”, sintetiza Mariana Lobo.

PARA MODIFICAR A CERTIDÃO DE NASCIMENTO
NÚCLEO DE DIREITOS HUMANOS E AÇÕES COLETIVAS
ONDE: avenida senador Virgílio Távora, nº 2.184, no bairro Dionísio Torres.
QUANDO: segunda a sexta-feira, de 8h ao meio-dia e de 13h às 17h.
CONTATOS: (85) 9.8895.5514 / (85) 9.8873.9535 / ndhac@defensoria.ce.def.br

RETIFICAÇÕES ANO A ANO NO NDHAC
2017: 17 (todas por ações judiciais)
2018: 75 (início de ação administrativa)
2019: 122
2020: 61
2021: 201
2022: 225 (até 30 de junho)
TOTAL: 701
Fonte: Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas da DPCE.