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“O processo de escravização deixa sequelas até hoje”, diz especialista no curso de formação de novos defensores

“O processo de escravização deixa sequelas até hoje”, diz especialista no curso de formação de novos defensores

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A Escola Superior da Defensoria Pública (ESDP) promoveu nesta segunda-feira (18/1) mais uma etapa do curso de formação para os quatro recém-empossados membros da Defensoria Geral do Ceará (DPCE). Em transmissão pelo YouTube, os novos defensores assistiram à palestra “Racismo estrutural e Sistema de Justiça”, ministrada pela mestre em Direito e Criminologia, e especialista em relações étnico-raciais Deise Benedito.

Esta é a última semana de capacitação dos novos membros, que já participaram de diversas outras atividades sobre questões internas e externas à atuação defensorial desde as posses, ocorridas em dezembro de 2020 e janeiro deste ano. O tema dialoga com o programa da ESDP dos últimos meses, nos quais foram realizadas diversas lives no Instagram e seminários em outras plataformas a respeito das diversas formas de manifestação do racismo.

“O racismo é estrutural porque vem desde a formação do nosso povo, de pessoas que foram escravizadas e foi muito conveniente para uma determinada camada social manter esse status e tirar proveito disso. Por isso, é importante estarmos sensíveis e atentos a essa questão. Pessoas negras precisam ocupar espaços de fala qualificada e de poder. É importante lutarmos por igualdade. As cotas, por exemplo, instituídas recentemente pela Defensoria, são importantes pra diminuir a distorção e a injustiça contra o povo negro”, afirmou a diretora da Escola, defensora Patrícia de Sá Leitão.

Para Deise Benedito, a escravização é uma “chaga aberta”. “O processo de escravização deixa sequelas até hoje, porque ele passou pela ocupação de territórios, pela ocupação de corpos e pelo comércio de africanos. Foram mais de 300 anos transportando carne humana em condições terríveis. Quantos jovens sentiram o pé do colonizador nos seus pescoços e disseram “eu não consigo respirar”? É o mesmo “eu não consigo respirar” que neste momento está sendo dito por pacientes nos hospitais de Manaus. E pode estar sendo dito por descendentes de escravizados negros ou indígenas”, afirmou.

Ela ressaltou aos novos defensores que, pela natureza da Defensoria, eles vão lidar com pessoas das mais variadas vulnerabilidades. Muitas, inclusive, com histórico de escravização familiar em gerações ancestrais. “São pessoas que não estão no poder, populações secularmente desprovidas dos seus direitos. Como acolher? O Estado vira as costas para quem mora na favela. O grande desafio é compreender o que é o racismo pras mulheres negras, sempre hipersexualizadas e vistas como sem nenhuma qualidade”, ponderou a estudiosa.

A participação da mulher negra na luta histórica por liberdade e garantia de direitos foi enaltecida por Deise Benedito. Nos tempos da escravização, elas mobilizaram-se tanto em prol de si próprias quanto de companheiros e filhos. Hoje em dia, o envolvimento feminino em causas similares é o mesmo. Pesquisa recente da DPCE comprovou que mulheres são maioria nos balcões de atendimento da instituição. Muitas delas em busca da soltura de familiares ou tentando garantir medicação ou cirurgia para elas mesmas ou parentes próximos.

“A essência da população negra deste país é a da liberdade, que não é diferente da essência de muitas mulheres que vemos nas varas dos fóruns vendendo bala e comida para terem um dinheiro a mais e poderem pagar um advogado pra soltar o filho que está no socioeducativo. A cor é um instrumento poderoso pra discriminação. E nós temos um Judiciário misógino, machista, elitista, preconceituoso e segregador. Um Judiciário que se formou baseado na lógica da escravidão, do racismo. Nós vemos decisões judiciais assustadoras e totalmente embasadas em questões ideológicas que nada têm a ver com Direito”, declarou Deise Benedito.

A especialista lembrou que a desigualdade atual do Brasil é reflexo de uma série de políticas implementadas pelo Estado. “A identidade do negro perigoso existe desde a escravidão. A fuga era considerada um ato ilícito. Quem fugia, cometia um crime e a essa pessoa eram atribuídos traços de periculosidade. Não tinha trabalho pros negros livres. E muitos vieram do Interior pras cidades, causando uma insurgência diante do desemprego. Não houve um plano de inserção social dessas pessoas. A população negra passa a ser vigiada e castigada. O que foi oferecido foi um projeto de segurança pública. E muitas teorias racistas ganharam força, pregando o branco como detentor do conhecimento e da riqueza, e o negro relegado à exclusão dos processos educacionais e do acesso a bens. A democracia racial [tese de que todos são iguais e têm os mesmos direitos garantidos e acesso às mesmas oportunidades] foi difundida, mas nunca existiu. Se mantém até hoje a preservação dos valores da população branca”, afirmou Deise.

A estudiosa enalteceu ainda a importância do Movimento Negro Unificado, instituído em 1978, no auge da Ditadura Militar, e existente até hoje, sendo fundamental para o enfrentamento à violência policial e ao genocídio do povo negro brasileiro. “Esse extermínio não acontece de hoje. O que se tem hoje é uma transparência maior dessa mortandade. Matam porque acham natural. São vidas descartáveis. Vidas incapazes de se desenvolver e, por isso, têm que morrer. Na lógica da segurança, a população branca tem que ser protegida e a população negra tem que ser contida. Há uma vigilância maior nos bairros negros ou sobre os negros. Esses corpos são sempre os mais visados nas abordagens policiais.”

Deise atestou ainda que são exatamente esses indivíduos o público mais recorrente da Defensoria Pública em todo o País. “Muitas Defensorias não têm o mínimo pra funcionar com dignidade. A gente vê outros órgãos com prédios bem estruturados, tapetes vermelhos, funcionários capacitados etc. Enquanto isso, a Defensoria está muitas vezes sem funcionários, sem defensores e em prédios horríveis. Por quê? Porque a Defensoria presta serviço aos mais pobres. E quem são os mais pobres? São os negros, as mulheres, os gays, os sem-teto… Esse tratamento diferenciado tem caráter estrutural de raça. Não dá pra falar em equidade do Sistema de Justiça assim”, finalizou.

Para assistir à palestra completa, clique aqui.