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“O racismo ambiental é, sem dúvida, um tema da modernidade”, diz Anielle Franco

“O racismo ambiental é, sem dúvida, um tema da modernidade”, diz Anielle Franco

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Texto: Bianca Felippsen

Pela primeira vez, o termo racismo ambiental foi vocalizado com clareza por uma autoridade de primeiro escalão do governo no Brasil. Em 2024, ao comentar os impactos desiguais das enchentes no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul, a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, colocou o conceito no centro do debate público — e enfrentou resistência. A reação, segundo ela, expõe não apenas o desconhecimento generalizado sobre as injustiças ambientais, mas também a dificuldade da sociedade em aceitar que mulheres negras ocupem posições de formulação e autoridade.

Nesta entrevista exclusiva à Defensoria do Ceará, a ministra – que tem sua história marcada pelo trágico assassinato da irmã e política brasileira Marielle Franco – fala sobre o papel do Ministério da Igualdade Racial na construção de políticas públicas para o enfrentamento do racismo ambiental, detalha ações voltadas à COP30 do Governo Federal, o diálogo com os movimentos e ressalta a importância de escutar e integrar saberes tradicionais na agenda climática. Em suas palavras, justiça climática e justiça racial são sim indissociáveis. “Não dá mais para pensar políticas ambientais que não incluam quilombolas, indígenas, povos de terreiro e periferias urbanas”, afirma. Uma leitura necessária de um debate indispensável.

Confira a entrevista:

Foto: Lela Beltrão

Ministra, em 2024, a senhora associou os impactos climáticos (como as chuvas no RJ e no RS) ao racismo ambiental, o que gerou críticas por parte de setores da sociedade. Acredita-se que foi a primeira vez que uma pessoa em cargo de chefia de Estado no Brasil usou o termo de forma tão clara e enfática. Como a senhora avalia a reação pública a essa declaração e o que isso revela sobre a compreensão do racismo ambiental no país?

Sobre esse tema, vale trazer dois aspectos. Primeiro é que pode ser realmente difícil o entendimento de que os impactos da crise climática planetária não são vividos da mesma maneira por todos nós. Sou professora desde os meus 17 anos, sei a importância da formação.

A melhor forma de combater a desinformação é com consciência e exemplos.

Vejamos o caso dos quilombos do Norte do Brasil, em Oriximiná. São comunidades ribeirinhas, quando o rio Trombetas baixa, as comunidades perdem seu ganha-pão. Elas não conseguem pescar. Elas perdem a possibilidade de ir e vir, porque o rio deixa de ser navegável em certos pontos.

O mesmo vale para as periferias em São Paulo, no Rio e em todo o Brasil. Veja os desmatamentos, as queimadas, as enchentes, as pessoas mais vulneráveis sofrem mais e tem poucas condições de se reerguer quando perdem tudo.

O outro ponto é a reação desproporcional ao termo… eu sempre digo que tem muita gente que não aceita ver qualquer mulher negra sendo dona de conhecimento. Eu vou até generalizar mais: qualquer mulher que chegue nessa posição, muitas vezes será atacada, e todos os dias a gente vai ter que demonstrar que a gente é capaz, que a gente sabe do que está falando.

Não só quando eu falei do racismo ambiental, mas quando eu falei do racismo linguístico. Tenho doutorado em linguística aplicada, sou estudiosa de linguística desde 2012 e tenho muito orgulho de falar sobre isso. E o racismo ambiental não foi a Anielle que trouxe, pelo contrário, esse tema já leva anos e anos. É uma expressão criada na década de 1980 pelo Dr. Benjamin Franklin Chavis Jr., em meio a protestos contra depósitos de resíduos tóxicos no condado de Warren, no estado da Carolina do Norte (EUA), onde a maioria da população era negra.

Quando a gente vê uma unanimidade como a Marina Silva [Ministra do Meio Ambiente], que já falava disso, outros intelectuais da questão ambiental dos Estados Unidos, Colômbia. A própria Francia Marquez [vice-presidente colombiana], a gente não precisa ir muito longe.

Racismo é racismo e precisamos lembrar disso, mas o racismo ambiental é, sem dúvida nenhuma, um tema da modernidade.

A gente não consegue falar de nenhum tipo de racismo, de desigualdade, de gênero, de território, se a gente não pensar nesses impactos da crise climática. É por isso que eu trabalho tão perto das ministras Sônia Guajajara e da Marina e tenho muito orgulho de dizer que são elas que estão ali.

Considerando as especificidades brasileiras, como o Ministério da Igualdade Racial tem atuado na formulação de políticas públicas para o enfrentamento do racismo ambiental?

O Ministério da Igualdade Racial é um dos órgãos do Governo Federal que está trabalhando em âmbito nacional e internacional para dar visibilidade ao tema do racismo ambiental na 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, COP30, marcada para novembro, em Belém, no Pará.

Não dá para falar em mudanças climáticas sem entender que os quilombolas e indígenas são os agentes de preservação do nosso planeta. Nosso papel é dar visibilidade, criar políticas públicas de enfrentamento ao racismo ambiental e defender justiça climática e justiça racial como compromisso fundamental para o desenvolvimento sustentável.

Recentemente também, o Ministério da Igualdade Racial firmou um Acordo de Cooperação Técnica para produzir estudos e insumos técnicos e científicos que contribuam para o avanço da transição justa no Brasil, a partir da inserção da perspectiva racial nas políticas nacionais de clima. A ideia é fortalecer o enfrentamento ao racismo ambiental e climático, como forma de fomentar uma transição ecológica que promova equidade e reduza desigualdades históricas no Brasil, ou seja, com justiça climática.

Em breve, ao lado dos ministérios do Meio Ambiente, Desenvolvimento Social e Povos Indígenas, lançaremos Comitê Nacional de Enfrentamento ao Racismo Ambiental e Climático, que vai se concentrar em ações voltadas às populações negras, indígenas, quilombolas e tradicionais, as mais afetadas por desastres naturais, degradação ambiental e mudanças climáticas.

O MIR integra as ações do Plano Clima, do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA), com seus pilares de mitigação, adaptação e justiça ambiental. No âmbito do ODS 18, o MIR contribui para o debate por meio do fortalecimento das metas e indicadores, trazendo a compreensão de como a igualdade etnico-racial precisa ser considerada como vetor de desenvolvimento sustentável. O ODS 18, ao abordar a igualdade etnico-racial, contribui para a construção de um futuro mais justo e igualitário, onde as comunidades negras e periféricas não sofram os impactos desproporcionais das mudanças climáticas e da degradação ambiental. O reconhecimento e o enfrentamento do racismo ambiental são essenciais para alcançar a Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas, que busca um desenvolvimento sustentável para todos.

Foto: Lela Beltrão

A senhora vê o debate sobre racismo ambiental como uma oportunidade de maior articulação entre diferentes pastas de governo, como as áreas de Meio Ambiente e Cidades/Desenvolvimento Regional? Quais são os principais entraves e avanços nesse diálogo intersetorial?

Com certeza! Esse é um tema que nos une e nos impele a trabalhar de maneira conjunta, buscando mais sustentabilidade e propostas efetivas de combate ao racismo ambiental e a crise climática global. Nossa forma de conduzir esse trabalho é por meio também da valorização dos saberes tradicionais, formulando instrumentos que possam incluir quilombolas, povos de terreiro e povos tradicionais nos debates que envolvam combate ao racismo ambiental e adaptação às mudanças climáticas.

Partindo dessas temáticas, instituímos, juntamente com o Ministério do Desenvolvimento Agrário e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, uma portaria conjunta que versa sobre o plano de ação da agenda nacional de titulação quilombola.

Você sabia que apenas 0,04% do desmatamento da região amazônica aconteceu em área quilombola?  Um levantamento do MapBiomas mostrou que territórios quilombolas estão na liderança da preservação da cobertura vegetal nativa do nosso país, juntamente com os territórios indígenas. Mais uma demonstração de que não apenas é necessário, mas é acertado entender como essa integração com a natureza resulta em mais preservação e acumular esse conhecimento.

Nós ainda lançamos o edital Kala-Tukula, em parceria com o Ministério das Relações Exteriores, que capacita lideranças negras e tradicionais para atuar em negociações internacionais sobre clima e meio ambiente e o edital Mãe Gilda de Ogum que, em mais uma articulação institucional, foi lançado em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz. Com aporte financeiro de R$1,5 milhão, uma de suas linhas é o fomento à agroecologia dos povos e comunidades tradicionais de matriz africana e povos de terreiros.

Mostrando que as parcerias institucionais vão além da Esplanada dos Ministérios, lançamos o programa Quilombos das Américas, em parceria com o governo da Colômbia, que tem justamente a intenção de promover práticas de gestão ambiental sustentável e dar apoio à produção agrícola e preservação de tecnologias tradicionais.

Como você pode ver, as pastas governamentais têm atuado conjuntamente. Trabalhamos para que possamos promover e fomentar uma mudança social que reconheça o racismo ambiental e climático e se engaje para combatê-lo.

Temos também o desafio de trazer para a mesa dos debates as pessoas que atuam diretamente na conservação dos biomas, aquelas que são guardiãs de conhecimentos tradicionais e agentes de proteção do planeta, reformulando a percepção social de que preservação ambiental só se faz no alto escalão, dentro das instituições. Precisamos e seguiremos fortalecendo lideranças para que possamos proteger melhor nosso meio ambiente.

Como o MIR tem dialogado com movimentos sociais (quilombolas, indígenas e/ou periféricas) para enfrentar o racismo ambiental? Há canais institucionais de escuta e participação?

O Ministério da Igualdade Racial, desde sua criação, preza pelo diálogo na construção de todas as suas políticas públicas. Somos uma pasta transversal, pois a igualdade racial precisa estar na saúde, na educação, no transporte, na cultura, na economia, no esporte. A parceria e o diálogo são ferramentas presentes em toda a nossa gestão.

Então, por exemplo, ao construirmos a Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental Quilombola, instituímos um comitê gestor que conta com representação da sociedade. Essa é uma política que atua diretamente na preservação ambiental e climática a partir da própria comunidade, que participa e conduz a ação de proteção respeitando sua cultura e suas tradições; ao formularmos o Programa Juventude Negra Viva (PJNV),  percorremos o país com caravanas que ouviram jovens negros; ao propormos a Política Nacional para Povos e Comunidades Tradicionais de Terreiro e de Matriz Africana, percorremos o país com a série de encontros Abre Caminhos; ao integrar as Caravanas Federativas, recebemos demandas do público; ao percorrermos o país com os Encontros Estaduais sobre Ações Afirmativas e Promoção da Igualdade Racial, abrimos um canal direto de escuta e participação com a sociedade civil. Ao promovermos o Encontro Nacional de Gestores/as e Conselheiros/as de Promoção da Igualdade Racial, seguimos dialogando.

Buscamos ativamente escutar a sociedade e criamos ocasiões e estímulos para que ela participe, nos dizendo quais as principais demandas da comunidade negra quilombola, de terreiro, cigana e periférica. Temos ainda o nosso Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial, um conselho participativo, democrático e muito relevante para qualificar a agenda pela igualdade no Brasil.

Além do nosso movimento ativo de participação e escuta, de toda forma, é sempre possível buscar o Ministério por meio de canais oficiais de recepção de sugestões, a ouvidoria, ou mesmo pelos contatos institucionais que ficam disponibilizados, de maneira aberta e pública, no site do Ministério da Igualdade Racial.

 

Foto: Lela Beltrão