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“Oportunidade de mudar de vida”

“Oportunidade de mudar de vida”

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Existir e se tornar visível ao mundo. Parece ser uma condição fácil que se inicia a partir do nascimento de alguém e a emissão dos documentos básicos que possam garantir a cidadania. Mas nem sempre é assim. Há uma parcela da população que vive sob violências diárias e resiste dentro da sociedade.

Alexia Batista, aos 33 anos, conhece muito bem esse contexto. Há nove anos ela saiu do distrito de Parazinho, da cidade de Granja, para tentar uma nova vida em Fortaleza. O medo e as dúvidas preenchiam a bagagem. “Eu me assumi como travesti e saí do meu interior, porque foi muito difícil a aceitação das pessoas. Os amigos se afastaram, foi difícil a aceitação da minha família, mas quando eu vim pra Fortaleza eu tomei a decisão, bati o pé no chão e, a partir daquele momento, vou ser quem realmente quero”, afirma.

Desde então, Alexia fez de tudo na vida para sobreviver na capital. “Passei um tempo na casa do meu irmão e fui lutar pelos empregos. Tudo que aparecia eu pegava, mas não ficava muito tempo. Minha aparência é de uma mulher, e como eu ia entregar os documentos que não me representam? Os patrões ficavam insistindo na documentação e quando eu entregava eles viam os documentos de um homem e me chamavam no escritório, inventavam uma desculpa qualquer e faziam meu desligamento, mas eu já sabia o real motivo”, complementa.

Alexia trabalhou como empregada doméstica, babá, atendente em barraca de praia, garçonete em lanchonetes e a cada vez que a empresa pedia a documentação para oficializar o contrato, ela desistia. No último emprego, era auxiliar de cozinha em um restaurante de um bairro nobre da cidade. Todas as pessoas sabiam que ela era uma travesti. “Eu tinha prometido pra mim mesma que não ia mais esconder a minha identidade. Comecei a trabalhar lá todo mundo sabendo que eu era travesti. No começo, foi tudo ótimo. Mas pouco tempo depois sofri uma situação de preconceito que eu nunca tinha passado”, relembra.

O dono do restaurante pediu uma reunião com a jovem para dizer que as outras funcionárias estavam incomodadas por Alexia usar o banheiro feminino. “Eu sempre, durante toda a minha vida, frequentei banheiro feminino. Depois que fui trabalhar neste canto, começaram os tititis pelas minhas costas. Isso me abalou tanto! Eles queriam que eu usasse o banheiro masculino e passei a fazer isso, contra a vontade, mas como eu precisava do emprego, eu tinha que aceitar”.

Não há legislação federal que garanta o acesso de mulheres e homens trans a banheiros públicos de acordo com o gênero com que se identificam. O julgamento que trata da questão está parado há sete anos no Supremo Tribunal Federal (STF), desde que o ministro Luiz Fux fez um pedido de vista do processo. De qualquer forma, não faz sentido negar o acesso de pessoas trans aos banheiros públicos se no país existe o reconhecimento do uso do nome social. Segue o mesmo princípio de respeito à dignidade e ao direito de personalidade. Na Defensoria é assim.

Depois dessa situação, um amigo a aconselhou que ela realizasse o cadastro no Centro de Referência LGBT Janaína Dutra, serviço municipal de proteção e defesa da população Lésbica, Gay, Bissexual, Travesti e Transexual. O equipamento da prefeitura leva o nome de uma travesti que coloriu um sonho para que outras travestis e pessoas transexuais possam ser respeitadas de forma plena.

“Foi assim que surgiu a vaga na Defensoria. Quando me ligaram informando que era do órgão, eu fui do céu ao inferno de preocupação. Pensei: ‘o que foi que aconteceu? Quem é que está me processando?’. Eu só pensava que poderia ser isso. Mas logo a pessoa me explicou que era uma vaga pra trabalhar. Eu entendi como um sinal de Deus, uma oportunidade para que as coisas começassem a andar na minha vida. Liguei para os meus pais e disse que eu ia trabalhar na Defensoria Pública, em Fortaleza, com gente importante, pessoas maravilhosas. Falei sem nem sequer conhecer o povo, né? Mas eu não errei. São pessoas maravilhosas mesmo.”

Alexia trabalha há seis meses no Núcleo da Defensoria do Segundo Grau. Atua no setor de manutenção e cuida com zelo, carinho e dedicação de todos que trabalham por lá. “Aqui eu sou bem tratada, bem cuidada por todo mundo, pelos defensores, pelos colaboradores, por todas as pessoas. Quando eu tenho que ir na sede por algum motivo, também sou tratada muito bem. Eu nunca tinha sido tratada tão bem em um local de trabalho e quero crescer dentro da instituição, porque eu vi que poderia ser a minha oportunidade de mudar de vida”.

Ela está feliz. “Eu penso futuramente subir mais um degrauzinho. Sonho em fazer Enfermagem ou crescer na área da Defensoria Pública. Onde eu imaginei um dia eu trabalhar na Defensoria Pública? Jamais pude imaginar que eu ia trabalhar em um órgão público. Só o fato de eu ter o meu próprio dinheiro, plano de saúde, ter o meu cantinho e não dar satisfação pra ninguém, já é ótimo. Eu não tive muita oportunidade na vida. As coisas pro meu lado não foram um mar de rosas. Passei por muita barra, preconceito, homofobia. Mas isso não me abalou, não alterou o meu psicológico, e segui adiante. Tanto que hoje estou aqui!”, se admira. Alexia tem sonhos. Todes têm.