
HC Coletivo em favor das mães presas provisoriamente completa 4 anos. DPCE tem atuação na unidade feminina
Penso em iniciar as perguntas, mas sou surpreendida.
-Você tem filhos, né?
-Como você sabe?
-Essa correntinha aí. É um casal.
Pego no pescoço e, constrangida, sorrio. Ela continua…
-Não queira passar pelo que eu tô passando. Ficar longe dos meus filhos é a pior coisa do mundo. Não desejo isso para ninguém. Mal tenho notícias deles, porque ficaram com o pai. Meu irmão quando vem me visitar não traz notícias porque não se dá bem com essa família paterna. O que sei é que minha filha não come, vive triste, não tá bem na escola. Meu filho tá agressivo. Quando eu estava em casa, meu marido era um bom pai. Mas não tenho notícia de como eles estão agora.
A conversa é do dia 9 de fevereiro e o rosto da moça de 23 anos está marcado por noites mal dormidas. Ela estava grávida de 8 meses. “Eu só posso esperar. Sei que vou sair daqui porque todo mundo sai um dia”, desabafa.
Interna no Instituto Penal Feminino Auri Moura Costa (IPF), localizado na Região Metropolitana de Fortaleza, ela personaliza o perfil de mulheres encarceradas no Brasil. É jovem, negra, tem entre 18 e 29 anos, de dois a cinco filhos, baixa escolaridade (muitas sequer completaram o ensino fundamental) e está presa por envolvimento com tráfico de drogas. O perfil está no último e único Censo Penitenciário realizado no Estado, que data de 2017.
J. está grávida do quarto filho. As três crianças (de sete, quatro e um ano) têm a garantia da presença da mãe em casa, enquanto ela aguarda julgamento, por meio de dois marcos na legislação brasileira. A primeira foi a Lei nº 13.257, de 2016, que permitiu a alteração do Código de Processo Penal, substituindo a prisão preventiva pela domiciliar para mulheres cujos filhos tenham até 12 anos de idade.
A segunda completou quatro anos no último domingo, dia 20 de fevereiro. Segundo o Supremo Tribunal Federal (STF), mulheres gestantes ou com filhos de até 12 anos foram beneficiadas pelo Habeas Corpus coletivo nº 143.641, favorecendo o convívio familiar entre mães e filhos. Durante a leitura do voto, o ministro Ricardo Lewandowski ressaltou: “estamos transferindo a pena da mãe para a criança inocente. Lembro da sentença de Tiradentes: as penas passaram a seus descendentes.”
O defensor público Emerson Castelo Branco, titular do Núcleo de Assistência aos Presos Provisórios e às Vítimas de Violência (Nuapp), atendeu a moça e fez o pedido para prisão domiciliar no dia 29 de dezembro de 2021. O processo tramita na Vara de Delitos de Organização Criminosa de Fortaleza e envolve outras pessoas. Ela nem sabia ao certo o teor da denúncia, mas tinha um mandado em aberto e ficou presa.
No dia 16 de fevereiro, o pleito foi concedido. A emoção de retornar ao lar se misturou com as dores do parto. Maria Júlia, que estava no ventre da mãe, nasceu no dia seguinte.
Para Emerson Castelo Branco, “o HC inaugurou um novo remédio constitucional coletivo, permitindo que uma violação ampla, massiva e sistemática do direito à liberdade por coação ilegal e o abuso do poder passam ser coibidos por um instrumento com grande abrangência e efetividade. Eu trabalho diariamente para que esse HC seja não só um marco mas uma fonte de inspiração para decisões futuras na defesa ao direito à dignidade e liberdade e na promoção da participação social nos espaços da justiça.”
De acordo com a Secretaria Estadual de Administração Penitenciária (SAP), de 2018 até o fim do ano passado, 333 mulheres foram beneficiadas pelo HC Coletivo. São mães que estavam presas preventivamente (sem sentença condenatória). A Defensoria atua nas análises de processos e atendimentos na unidade. De acordo com a SAP, ao longo de 2021, em parceria com a Defensoria, foram realizados 2.631 atendimentos no IPF.
Socorro Matias é a diretora da unidade prisional feminina. Ela conta que o trabalho com as internas gestantes começa desde a triagem, onde é verificado se a mulher já fez algum tipo de atendimento pré-natal. Começa o encaminhamento aos profissionais que atendem na unidade para exames e acompanhamento da mãe e do bebê. As mulheres ficam em um anexo da unidade, a creche Irmã Marta que acolhe gestantes e mulheres com seus filhos. As crianças também recebem assistência, como a garantia da emissão do registro de nascimento, acesso à vacinação, atendimento pediátrico e acompanhamento para o que for necessário.
O cárcere não é lugar adequado para o exercício da maternidade e para a vivência plena da infância. Socorro Matias reconhece isso. “Realmente, o benefício do HC Coletivo para que essa presa possa ir para casa e ficar com suas crianças é de suma importância. Assim, ela fica fora do ambiente carcerário, para o próprio desenvolvimento da criança, que precisa crescer em um ambiente que não seja uma unidade carcerária, para o qual ela não escolheu estar. Mesmo com todas as ações que possam ser evidenciadas e disponibilizadas, o ambiente familiar é incontestavelmente melhor para a mãe e para a criança.”
Ao sair da prisão, essas mulheres precisam recomeçar a vida e ainda lidar com uma sombra do passado: o preconceito da sociedade. “Eu quero recomeçar. Sei onde falhei e tenho esse direito. Vou fazer um curso de técnica de enfermagem. Só assim vou mudar a minha realidade e o futuro dos meus filhos”, assegura a moça, cujos quatro filhos têm a chance de recomeçar com a mãe.
A decisão do HC Coletivo também abrange adolescentes gestantes e mães em internação provisória, acusadas de cometerem atos infracionais. A defensora pública Julliana Andrade, supervisora do Núcleo de Atendimento da Defensoria Pública da Infância e Juventude (Nadij) e titular da 4a vara da infância, é uma das defensoras responsáveis por esse pedido.
“Algumas vezes já tivemos que ingressar com Pedido de Revogação de Internação Provisória, porque aquela adolescente é mãe de uma criança de até 12 anos e por isso possui o direito de ter a internação provisória revogada ou transformada em internação domiciliar para, mesmo ainda tão jovem, cuidar de seu filho e sua filha, que no momento muitas vezes ficam sob os cuidados de familiares que não têm condições de dar a assistência que aquela criança precisa. Trata-se de uma situação bastante complexa, pois a prematuridade da mãe (adolescente), que mesmo em fase de desenvolvimento psicológico e social necessita cuidar e fomentar em seu filho ou filha o vínculo materno, fundamental para formação da personalidade tanto do filho(a) como da mãe.”