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“Agora, o papel vai dizer que nós somos indígenas”

“Agora, o papel vai dizer que nós somos indígenas”

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“Se as pessoas não tiverem vínculos profundos com sua memória ancestral, com as referências que dão sustentação a uma identidade, vão ficar loucas neste mundo maluco que compartilhamos.”
Ailton Krenak

Ali, onde a lagoa se chama Encantada e os poucos de outrora multiplicaram-se nos muitos de hoje; sim, nesse território sagrado, toda a humanidade nasceu de uma mulher. Ela atende por Pequena, como quem guarda uma memória bonita do pai, de quem recebeu o apelido ainda menina. E o que tem de agigantada nas encantarias vai ter, em breve, enfim, no papel. Maria de Lourdes da Conceição Alves, a cacique, vai tornar-se indígena não só de fato, pois já o é, mas também de direito. Perante a lei.

Essa mudança na certidão de nascimento, que passará a constar a etnia a qual ela pertence, é reivindicada há décadas por povos originários. Agora, e só agora, com o Brasil caminhado mais de 500 anos na história e novos ordenamentos jurídicos em vigor no país, isso é possível. Os dizeres do homem branco informarão: Jenipapo-Kanindé. Confirmarão o que ela já sabe. O que ela já é, desde a nascença. “Era pra gente ter isso há muito tempo, mas não tinha como. É importante pra onde a gente for a gente mostrar. O documento vai provar que nós somos esse povo”, sintetiza.

Cacique Pequena foi, na infância, Maria de Lourdes da Conceição Dias. Casou, 73 anos atrás, quando ainda era só uma adolescente de uma década e meia de vida, e trocou o sobrenome do pai pelo do companheiro. Desde então, virou Maria de Lourdes da Conceição Alves no papel dos brancos. E, assim, tem 16 filhos, 49 netos e 39 bisnetos espalhados em 1.734 hectares de terra indígena demarcada em Aquiraz (mas ainda não homologada pelo Governo) e numa genealogia muito específica. A de quem apregoa um futuro ancestral.

 

 

“O cocar já diz que a gente é indígena. Os colares também. Mas a gente ainda é muito xingado pelo homem branco. Muitos nos discriminam e dizem que o Ceará não tem indígena. Que a gente é coisa inventada! Onde já se viu isso, meu irmão? Ninguém pode ser inventado! Você tem que ter pai e mãe pra dizer que você é essa qualidade de gente! Mas ainda tem quem diga, ainda hoje, que nós não somos indígenas. Agora, o papel vai dizer que nós somos. Por isso que é importante todos os povos terem a etnia na certidão”, diz Pequena.

Caso desejasse, ela poderia também mudar o nome. A legislação atual permite a retificação para inserção de algo da cultura indígena. A cacique, no entanto, prefere preservar o Maria de Lourdes da Conceição Alves. A esta altura da vida, retificar geraria um efeito cascata sobre as quase 500 pessoas que hoje vivem às margens da Lagoa Encantada. Descendentes diretos dela que também teriam de alterar toda a documentação.

Em vez disso, Pequena prefere recordar. “Eu vim pra cá tá com 60 anos. Vim porque casei. E, quando cheguei, aqui não tinha nada. Só o céu, a água, as estrelas, a lua, o sol, a natureza, as casinhas de palha e um povo caçando mel, caçando caça, pescando, plantando mandioca, feijão, milho, jerimum, melancia, batata, macaxeira… Essas casas aí não existiam. Era só mata fechada. Mas era uma vida boa, porque você andava nu e ninguém dava fé. Nós tínhamos um pedacinho do paraíso. Tá tudo diferente. Hoje, nós temos um abismo. Porque somos atropelados de todo jeito pelo homem branco, que vem aqui dizendo que a gente não é indígena, mesmo sabendo que a gente é, e faz especulação [imobiliária]. Mas nós somos daqui e daqui a gente só sai pro cemitério e quando chegar o dia de Deus chamar”, reclama.

Depois de criar uma associação indígena e de articular politicamente a construção de um posto de saúde, um Centro de Referência em Assistência Social (Cras) e uma escola especializada em educação indígena, todos esses equipamentos funcionando dentro do território, a cacique sonha deixar como legado uma cooperativa para as mulheres indígenas Jenipapo-Kanindé. A expectativa é alta. Do tamanho da vontade de melhorar a vida de quem está no entorno da lagoa.

“O pessoal fez uma roda e me botou como cacique da aldeia. Eu sem querer, mas tive que aceitar. Porque entendo não como um empoderamento. Falo em missão de Deus, pois os indígenas daqui viviam escondidos e com medo de abrir a voz e falar. Então, tinha que vir essa mulher, tinha que vir essa criança fêmea com a estrela na testa pra trabalhar por um povo que vivia adormecido há muitos anos. E tive que fazer isso mesmo tendo uma vida cheia de sofrimento. Nunca passamos fome nem criei meus filhos pra pedir esmola. Então, eu venci”, avalia.

Com o último filho nascido quando a cacique tinha 49 anos, e todos os 16 vivos até hoje, sempre ali, ao derredor da mãe, o mais velho beira os 60 e mostra à indígena o quão mágica podem ser as palavras e as coisas. E a vida. “Quando era mais nova, eu vivi 11 anos sem enxergar. Passei 11 anos sem ver essas maravilhas, esse mundo, essas nuvens. Não via nada. Quem deu a luz do meus olhos foi a água ostra crua. Bebi ela, fiquei boa e hoje não tomo mais nada. Mas estou enxergando pra testemunhar todas as mudanças que vão acontecer daqui pra frente com essa mudança no documento que a Defensoria tá conseguindo pra nós”, afirma Pequena, a cacique Jenipapo-Kanindé.