Cotas são conquista ancestral: uma luta de muitos por um futuro melhor para todos
Texto: Bruno de Castro
Fotos: ZeRosa Filho
Colagem/Identidade Visual: Valdir Marte
Foram necessárias três décadas e meia de muita luta dos movimentos negros para as cotas raciais tornarem-se política pública no Brasil. Era fim da década de 1970 e o país ainda vivia uma ditadura militar que negava a existência do racismo, perseguindo e matando quem dela discordava, quando ativistas começaram a pautar formalmente, enquanto categoria organizada e inspirada nas lutas negras dos Estados Unidos, o papel estratégico das políticas afirmativas no combate à desigualdade racial (que não só existe como estrutura a formação da nossa sociedade desde a invasão europeia).
Em um Brasil que por muito tempo impediu – inclusive por força de lei – a presença de pessoas negras em determinados ambientes, as cotas raciais eram/são, sobretudo, uma estratégia de sobrevivência. Implementá-las é uma forma de assegurar o acesso de homens e mulheres a dois importantes meios de ascensão social: a educação e o serviço público. E, assim, em 2012, sob a presidência de Dilma Rousseff e, após turbulentos embates dentro dos dois governos de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011), nasceu a Lei de Cotas.
No começo das discussões políticas, há somente 21 anos, o descompasso era flagrante: ao mesmo tempo em que o Brasil era o segundo país mais negro do planeta (atrás apenas da Nigéria, na África Ocidental), apenas 2,5% dos estudantes universitários eram negros. “Como pessoas negras se tornariam defensoras, promotoras ou juízas sem formação superior? Ainda hoje, no mercado de trabalho em geral, quando a gente olha pros postos de poder, nós praticamente inexistimos. Então, as cotas raciais vêm para alterar a presença negra nesses espaços porque há uma dívida histórica do Estado brasileiro com essa população, que após o fim da escravização foi abandonada à própria sorte”, pontua o coordenador do Movimento Negro Unificado (MNU) no Ceará, Kim Lopes.
Na Defensoria Pública do Estado (DPCE), as cotas raciais datam de 2020, com a publicação da Instrução Normativa nº 83 no Dia de Zumbi e da Consciência Negra. À época, Elizabeth Chagas era a defensora geral e Antônia Araújo, ouvidora geral externa da instituição, exerceu papel central para a política afirmativa ser implementada e, posteriormente, ser transformada em lei própria da DPCE. Entre 2021 e 2022, a instituição realizou o primeiro concurso com reserva de vagas (20%) para negros e negras e, em 2023, em meio às comemorações do Novembro Negro, os seis primeiros aprovados negros por cotas raciais assumiram os cargos (de um total de 26 empossados). E foram acolhidos por quem já tinha conseguido ingressar.
QUEM LÁ ESTAVA
Hoje atuante nas cidades de Tauá e Crateús, no sertão dos Inhamuns, Rafael Pereira de Góis tornou-se defensor em dezembro de 2020, seis anos após ter feito concurso e 20 anos depois de ter sido estagiário na instituição, tempos esses nos quais as cotas raciais ainda não existiam na DPCE. “Na faculdade, eram só alunos brancos. Eu, negro, era peça rara. No dia do concurso, só tinha eu de negro na sala em que fiz a prova. O debate sobre cota racial na sociedade era bem embrionário e havia muita crítica. Muita gente falava em meritocracia para desmerecer a pauta. Hoje, graças a Deus, o debate está mais maduro. Mas lembro que, quando assumi, as pessoas chegavam pro atendimento e não acreditavam que eu era o defensor. Ainda hoje, se tenho um assessor comigo e ele é branco, as pessoas pensam que ele é o defensor e eu sou o assistente dele”, analisa.
E tudo isso acontece mesmo o público atendido pela DPCE sendo, de acordo com levantamento do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Escola Superior da instituição, 70% feminino, negro e de periferia. Em contrapartida, é justamente essa característica racial que leva a atuação de Rafael a outro patamar. “A gente se coloca no lugar porque a gente sabe como é. A gente, literalmente, sente na pele. E isso se impõe desde o primeiro dia. É uma realidade. Por isso que as cotas são tão necessárias. Elas precisam ser melhor compreendidas e cada vez mais estimuladas”, acredita.
Já a defensora Eduarda Paz e Sousa está na DPCE desde 2016. Assim como Rafael, fez concurso em 2014 e entrou na instituição em um tempo no qual não havia cota racial. Mas, diferente do colega, ela atua hoje na Vara de Organizações Criminosas, em Fortaleza. É também coordenadora-adjunta da Comissão da Igualdade Étnico-racial da Associação Nacional das Defensoras e dos Defensores Públicos (Anadep) e lembra da resistência social às cotas.
“Eu venho de universidade pública do Rio de Janeiro e o debate lá era um inferno. As pessoas falavam que cota iria privilegiar o negro rico. Mas cota não é sobre poder econômico. É sobre raça. Não é cota pra rico. É cota pra negro. Pra gerar representatividade. Pra gente ter uma defensora negra, pro país ter mais médicos negros… Ainda hoje, a gente ainda tem setores da sociedade muito resistentes às cotas e nós somos muito raros nos espaços. As pessoas me veem e não esperam que eu seja defensora. Até mesmo alguns colegas do sistema de justiça têm essa visão. Dá pra ver o espanto quando eu chego e as pessoas perguntam: “você é a defensora?”. E falam de um jeito que não falariam se fosse com uma pessoa branca. É notório”, pontua.
Ela acredita que avanços importantes aconteceram no debate sobre as cotas raciais e que, diante do perfil do público que a Defensoria atende, o amadurecimento da temática dentro da instituição era obrigatório. O contexto social, com as cotas reconhecidas em tribunais superiores, já realidade no ensino superior público e tendo pesquisas que derrubam o mito de que cotista tem mau desempenho, tudo isso, na avaliação de Eduarda, também contribuiu para as cotas raciais destinadas a pessoas negras na DPCE serem realidade.
Por isso, a defensora destaca: “a gente tenta não radicalizar o discurso, mas eu acho que tem que ser radical. Porque muito do que acontece com a população negra no Brasil, se fosse em outros países, dava revolução! Eu sei que esse discurso assusta, mas se o discurso não for revolucionário e transformador, de mudança radical mesmo, do jeito que a gente vê as estruturas da sociedade hoje em dia, o racismo não vai acabar. E ele influencia nas decisões. Então, se é pra cota resolver mesmo, que ela seja de 50% em todo canto. Nós não somos 50% da população?”.
De acordo com o IBGE, somos 56% no Brasil. No Ceará, 71,5%. “É maravilhoso ver a galera negra chegando. Porque não tem como eu atuar desconsiderando a minha pele. Ela reverbera em tudo. E nós temos que pautar debates difíceis, como o da questão racial nas abordagens policiais. Isso tem que ser colocado nas nossas petições! Tem que ser enfrentado nas decisões judiciais. E só quem vai fazer isso é a Defensoria. Cabe a gente criar essas teses”, acrescenta Eduarda.
CONSTRUIR UM NOVO DIREITO; DEIXAR UM LEGADO
Criar essas novas teses é o que a supervisora do Centro de Estudos Jurídicos e Aperfeiçoamento Funcional da DPCE, defensora Lara Teles, chama de “construir um novo Direito”. Ela destaca que a representatividade não pode ser um fim em si mesmo. Ou seja: cota racial nunca pode ser só sobre reserva de vaga. É preciso garantir que pessoas negras acessem espaços de poder, até mesmo para a população atendida se reconhecer racialmente nos defensores e sentir-se ainda mais acolhida, mas também é essencial transformar esses espaços.
“O Direito é muito branco. Sempre foi. Então, as cotas raciais permitem que pessoas negras cheguem nos espaços. Os defensores negros vão construir um novo Direito. Vão trazer novos horizontes de interpretação. Vão saber o que aquela pessoa sofreu na pele. Vão trazer essa vivência e isso vai influenciar na atuação deles. E eu acho que é a Defensoria quem tem que puxar esse bonde no sistema de justiça, porque faz diferença! Às vezes, o juiz não tem noção do que é ter a casa invadida pela polícia no meio da noite e o defensor, por ter lugar de fala a partir da raça, vai atuar no processo de forma diferente”, frisa Lara Teles.
Embora admita que a política de cotas está só no começo e que ainda há muito a avançar, a defensora não enxerga outro modo de ser que não o de uma DPCE cada vez mais antirracista. Leitura similar faz a historiadora Joyce Ramos, primeira quilombola a tornar-se ouvidora geral externa da Defensoria. Apesar de não ter chegado ao cargo pela via das cotas raciais (e sim por uma eleição), ela tem a missão de promover a democracia participativa e o controle social dentro da instituição. E o que são as políticas afirmativas de reserva de vagas para pessoas negras se não exatamente isso?
Pensando nisso, ela tem convocado a Defensoria a pensar mais e mais em pautas de inclusão da população negra e combate ao racismo. “Quando a gente compreende a realidade de tamanha desigualdade como é a brasileira, a gente entende a importância e a necessidade das cotas. Só elas resolvem tudo? Não. Mas são um ato importantíssimo de reparação diante de toda a exclusão que o Estado impôs ao povo negro. Então, é fundamental que nós também possamos fazer parte dos órgãos públicos. A chegada de defensores cotistas coloca para a instituição a responsabilidade de cada vez mais pensar a partir desses sujeitos. A presença negra demarca isso”, sublinha Joyce.
Ativista social forjada no Movimento Sem Terra, ela entende as cotas raciais como uma primeira missão cumprida para a Defensoria estar cada vez mais presente no debate público sobre o fortalecimento de políticas de Estado para as pessoas negras. Em resumo: dá para ir além da melhoria da própria atuação e olhar ainda mais para fora, para a sociedade, no sentido de contribuir com a transformação pela qual ela precisa passar. Porque não é razoável aceitar que a cada 23 minutos um jovem negro seja assassinado no Brasil.
“A Defensoria já tem sido publicamente reconhecida como engajada na luta antirracista. Recebe prêmios por isso. E pode fortalecer ainda mais a luta do movimento negro. Nós temos como reverberar lá fora. Agora, com defensores negros cotistas, mais ainda. E não adianta generalizar o público da Defensoria dizendo que são “todos os vulnerabilizados”. Não. São, majoritariamente, pessoas negras. Assim como a gente demarca a questão das mulheres, é preciso racializar esses sujeitos. E não é só em novembro, porque negro a gente é o ano todo. Política pública a gente precisa o ano todo. Então, que mais e mais políticas surjam independente do Dia da Consciência Negra. O que nós temos de fazer é deixar um legado”, acrescenta.
Assim também pensa o Movimento Negro Unificado no Ceará. “Há uma disputa ideológica em torno da raça. Por isso que ainda vemos tantas forças tentando derrubar as cotas. Mas a gente não quer só ter defensor negro. Nós precisamos que eles tenham letramento racial, porque a Defensoria é uma estrutura de poder e a presença negra nela mostra pra um jovem negro que ele também pode estar ali. E que essa presença é fruto da luta histórica de muitos que tombaram para garantir um futuro melhor para todos. É por isso que a gente não pode ser só ‘mais um’. A gente tem que fazer a diferença. Tem que ser uma pessoa negra com a consciência de que as condições do jovem negro são diferentes do jovem branco da classe média alta. E nós vivemos num país em que jovens brancos são absolvidos enquanto jovens negros são condenados mesmo que os dois respondam pelas mesmas questões na justiça. Ocupar espaços de poder é interferir nisso”, exemplifica Kim Lopes.
Esta reportagem integra o especial Frente Negra da Defensoria, que narra as histórias de vida dos primeiros cotistas negros da DPCE e revela bastidores do ano inicial de atuação deles. Para ler as demais matérias, clique aqui.