Glauber Leitão: “o mundo pode ser um lugar melhor com minha atuação”
Texto: Bruno de Castro
Fotos: Arquivo Pessoal e ZEROSA FILHO
Colagem/Identidade Visual: Valdir Marte
Por ter se ocupado cedo com a sobrevivência da própria família, o defensor público Glauber Leitão compreende o que passa alguém cujos direitos mais básicos são desrespeitados. Se essa pessoa for negra, como ele, o jovem alcança mais ainda o significado de tudo. “Já fiz atendimentos na zona rural, que tem energia somente há cerca de dez anos. Vivenciei isso quando visitava meus avós, onde a luz demorou muitos anos para chegar. Então, acaba que consigo dialogar bem com as pessoas nessas situações, que a maioria são da minha cor. Sei que não posso mudar o mundo. Mas sei que o mundo pode ser um lugar melhor com a minha atuação. Então, eu trago uma palavra de esperança. Gosto de deixar uma palavra de conforto, de alento”, diz.
Glauber entendeu ainda menino, para além de teorias e conceitos acadêmicos, que as desigualdades sociais não são fruto do acaso. Tampouco acontecem apenas pelo fato de se ser pobre (o que, ainda assim, não as justificam). Elas são fruto de uma desigualdade perpetuada pelo Estado, que iniciou, lá atrás, em 1500, na invasão luso-espanhola ao Brasil, um pacto para somente pessoas brancas serem pessoas, enquanto negroafricanos eram tratados como mercadoria. E permaneceram assim, como escravizados, por 388 anos, sendo impedidos do exercício da própria cidadania mesmo depois da liberdade conquistada em 1888. Glauber entende o quanto o Estado que impôs a essa população o trabalho forçado é o mesmo que a abandonou sem políticas de inclusão social, empurrando-a para uma vida precária e difícil de ser superada diante de tantas barreiras para estudar, trabalhar e ter o mínimo para subsistir.
Esses direitos violados há tantos séculos vêm sendo restaurados aos poucos. E o jovem defensor agora também faz parte disso. No cargo há um ano, ele entrou na Defensoria do Ceará pela política de cotas raciais para pessoas negras. Atua em Iguatu, no Centro Sul do estado, e lida diariamente com gente que nem ele: de origem humilde e beneficiário de algum programa social. Na faculdade, Glauber foi bolsista do Prouni. E chegou a outros serviços públicos também por políticas afirmativas antes de por aqui desembarcar.
Por isso, acredita numa Defensoria cada vez mais próxima das pessoas e mais parecida com elas desde a cor da pele, que tanto ainda define as oportunidades às quais temos acesso. O jovem aposta na ampliação da política de cotas raciais como peça-chave para o enegrecimento da DPCE – e, consequentemente, a garantia de mais visões de mundo e experiências de vida na instituição. Um cenário em diálogo com as inúmeras iniciativas Brasil afora no sentido de promover o protagonismo negro depois de tantos anos de exclusão dessas pessoas dos espaços de poder.
“Eu percebo que as pessoas têm um choque inicial quando me apresento como defensor. Um choque de pensar que pareço com elas; de ser uma pessoa negra atendendo outra pessoa negra. Isso é importante porque significa que elas se enxergam em mim. Se sentem mais à vontade pra expor suas demandas. Se livram de amarras, porque sabem que eu vivenciei o que elas vivenciam. E a Defensoria é a única capaz de fazer isso. Porque é sempre o último recurso das pessoas e porque o sistema de justiça como um todo é muito conservador, branco e tem pessoas encasteladas, que desconhecem a realidade da sociedade. E, muitas vezes, isso reflete em decisões judiciais totalmente dissociadas do mundo real. Quando essas instituições abrem as portas para pessoas negras, sem dúvida é um tipo de oxigenação necessária. São vivências que precisam ser consideradas para evoluirmos enquanto sociedade”, analisa Glauber.
PRA NÃO ESQUECER DE ONDE VEIO
Natural da Bahia, o estado mais negro do Brasil, ele diariamente atende casos de pensão alimentícia, guarda e visitação de filhos. Muitos deles de mães solo, negras e desamparadas pelos companheiros, que batem às portas da DPCE no Iguatu em situação de tamanha vulnerabilidade que desconhecem até os próprios direitos. Cabe ao defensor, portanto, informá-las sobre eles e correr contra o tempo para, a partir de uma ação judicial (ou extrajudicial, quando possível), conseguir melhorar a vida dessas mulheres e dessa(s) criança(s). “As pessoas sofreram tantas pancadas na vida que não se sentem nem mais sujeitos de direitos. Vão perdendo o senso de ser humano”, reflete.
É justamente para não esquecer de onde veio que Glauber faz, instintivamente ou de forma consciente, não importa, um exercício fundamental à filosofia africana: o sankofa. Ou seja: pensar no futuro a partir do que se conquistou no passado. Ou ainda: regressar ao passado, ressignificar o presente e construir o futuro. Um afrofuturo, no qual os dias sejam mais dóceis às pessoas negras. Assim, ele lembra sempre da trajetória dos pais, os responsáveis por não ter desistido de estudar, formar-se em Direito e tentar concursos públicos, mesmo em meio a tantas faltas em casa.
Alçado ao cargo de supervisor do núcleo da DPCE no Iguatu meses após a posse, o defensor já comemora bons resultados. As filas que se formavam em frente ao prédio ainda na madrugada por pessoas em busca de atendimento acabaram; as reclamações sobre o núcleo na Ouvidoria Geral Externa foram zeradas; e visitas a escolas para ministrar palestras sobre o que é ser defensor (e, assim, inspirar outros meninos negros) são feitas, bem como a comunidades.
“Meus pais sempre me incentivaram. Diziam que só através do estudo nós conseguiríamos ascender socialmente porque não vínhamos de berço de ouro. Tudo nosso foi fruto de muito trabalho. Então, posso dizer que minha chegada à Defensoria é um projeto familiar. Ela foi construída a muitas mãos e pra mim é motivo de muita alegria encontrar na instituição pessoas que se assemelham a mim: pessoas negras em espaços de poder que podem tomar decisões para a melhoria da instituição e para a vida de outras pessoas. Nós precisamos de pessoas que pensem diferente, para que elas coloquem o dedo em feridas de questões que não são debatidas. Essa é a função daqueles que chegam por cotas raciais. Porque o costume que a gente tem, enquanto sociedade, é de encontrar pessoas negras em posições de subordinação. Mas nós somos capazes de outras funções. Trazemos uma visão diferenciada de determinadas questões”, pontua o defensor.
Filho de um vigilante aposentado e de uma dona de casa que se formou em pedagogia tardiamente para realizar o sonho de, aos 49 anos, ser professora concursada, ambos ainda viventes em Juazeiro (BA), Glauber é o retrato de um Brasil que não é o Brazil, aquele das novelas, cheias de estereótipos ruins sobre pessoas negras projetados ao mundo ou aquele que os filmes retratam a condição negra como uma caricatura, quase folclorizada. Ele é a cara de um Brasil de verdade, no qual ser negro ainda significa partir de um lugar diferente do branco na condição de humanidade. E isso faz toda a diferença no que se entende sobre viver.
Esta reportagem integra o especial Frente Negra da Defensoria, que narra as histórias de vida dos primeiros cotistas negros da DPCE e revela bastidores do ano inicial de atuação deles. Para ler as demais matérias, clique aqui.