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“O mutirão me mostrou que a gente não tá só”

“O mutirão me mostrou que a gente não tá só”

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Aylla Katharine da Silva Marques é uma mulher orgulhosa de si. Aos 22 anos, a jovem mora na Paupina, periferia de Fortaleza. Em bairros como o dela, cujo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) está entre os mais baixos da cidade, viver significa exaltar a própria identidade em meio a parâmetros sociais em patamares preocupantes.

Apesar de um amanhã duvidoso, Aylla resistiu. E, no último dia 30, reexistiu. Renasceu. Deixou de uma vez por todas o homem biológico no passado para viver um presente por inteiro, no feminino. Dias cheios dela mesma, que reúne num só corpo todas as características do público atendido pelo Transforma, o primeiro mutirão da Defensoria Pública do Ceará (DPCE) de retificação de nome e gênero para pessoas trans e travestis, ocorrido no fim de junho.

Ela já tinha tentado mudar o nome na certidão de nascimento. Mas foi com a assistência da DPCE que conseguiu. Viu na televisão, efetuou inscrição, apresentou toda a documentação exigida por lei e, duas semanas depois, recebeu o novo documento, de graça, durante uma solenidade marcada por empoderamento e representatividade.

“Foi uma vitória! Representa muita coisa, porque nada melhor do que você chegar num canto e poder dar a sua identidade feminina. É constrangedor chegar numa loja, toda feminina, cabelo grande, peito e dar um documento masculino. E eu sempre fui muito afeminada. Sempre gostei de ter cabelo grande, de andar maquiada, de estar bem vestida. O mutirão me mostrou que a gente não tá só. Pra mim, significa que tem gente lutando com a gente, pela gente. Pra apoiar, pra dar força, pra mostrar que o mundo pode ser melhor e a evolução tá vindo”, diz Aylla.

O desejo de ser mulher, de exercer a própria mulheridade, ela diz que sempre existiu. Entre o começo efetivo da transição e ter o novo nome/gênero na certidão de nascimento, no entanto, um ano e sete meses se passaram. Com o apoio da família, a jovem já deu entrada na retificação do CPF, vai solicitar mudança também no RG e já tem dois sonhos traçados: cursar ensino superior e trabalhar. “Quero fazer Administração e Educação Física. Agora é ir atrás de emprego. Tive que perder o meu grande amor [a mãe, falecida em 2020] pra começar a me amar mais. Mas quando decidi entrar em transição, sentei com minha família e falei que não me sentia confortável do jeito que eu era e sim que eu era mulher. Então, pra minha família, eu sou uma mulher.”

 

“Queria meu nome em todo canto, o tempo todo”
Também jovem e também moradora da periferia de Fortaleza, Emily dos Santos Sombra é uma mulher de 25 anos que agora circula pelas ruas do Jangurussu ainda mais dona do próprio caminho. Dribla o baixíssimo IDH do bairro com uma certidão de nascimento que, enfim, condiz com a pessoa com a qual se identifica. Ela, no feminino.

“Eu nunca tinha tentado fazer a retificação. Já tinha pensado sim e até já tinha visto como era, mas não cheguei a tentar porque, confesso, me parecia bem complicado e fiquei um pouco desmotivada de ir atrás. Por isso, fiquei bem feliz e incrédula de participar do mutirão. Não esperava que fosse conseguir. Ter a nova certidão é a sensação de finalmente ser você mesma. E oficialmente também porque agora não vai ter um problema de eu ter que assinar um documento como Emily”, afirma.

A construção da própria identidade, a feminina, diferente do nome e gênero que lhe atribuíram no nascimento, ela divide em dois momentos: a adolescência, quando fez a si mesma diversos questionamentos sobre gênero, identidade de gênero e orientação sexual, e a experiência na universidade, que proporcionou o contato com outras pessoas trans e mais LGBTs. Foi, então, que deu início à caminhada de se enxergar enquanto mulher.

Tornar essa identidade algo público foi algo recente, encarando o medo da reação familiar. “Eu ainda dependia muito da família. Então, tinha receio. Me assumi publicamente mais por questões de trabalho. E foi até bem tranquilo. No geral, o pessoal foi bem solícito. E eu não aguentava mais esperar. Queria fazer a transição logo toda. Queria meu nome em todo canto, o tempo todo.”

E é justamente este o próximo passo de Emily. Após receber no mutirão da Defensoria a nova certidão, com nome e gênero no feminino, ela ainda não deu entrada na retificação em todos os demais documentos. Até o momento, apenas no CPF. Mas ela sabe: quando isso acontecer, mais coisas tenderão a mudar, especialmente o fato de não ser mais obrigada a viver o constrangimento de ter dois nomes.

Emily quer ser só Emily. “Eu acho que o que muda muito é isso de eu ser vista como eu mesma, de ter em todo canto o meu nome. Eu ainda passo por isso de certas coisas terem o nome antigo e é triste. Mas essa mudança por si só já significa bastante.”

 

“Eu sou oficialmente uma nova mulher”
Com nome de mártir que lutou por liberdade negra, Dandara Barros do Nascimento é também liberta. Tem 25 anos e não vive mais na amarra de uma identidade moldada por características biológicas. Da Região Norte do Ceará, ela exercita o olhar de um mundo feminino. É mulher. Nos afetos e, desde o mutirão da Defensoria, também na lei.

“Quando surgiu o movimento trans e de travestis de Sobral, eu passei a entender mais sobre os direitos que tenho. O dia em que recebi minha certidão nova foi um muito especial. Foi um sonho realizado! Pensei que esse dia fosse demorar ou nunca chegar, mas deu tudo certo e agora eu sou oficialmente uma nova mulher.”

Dandara lembra. Tinha só dez anos quando se percebeu mais afeita ao universo feminino do que ao masculino, imposto desde a primeira infância devido ao genital com o qual nasceu. Aliado ao que os outros falavam do jeito de ser dela, foi ajustando o modo de vestir e a deixar o cabelo grande até se tornar quem é hoje quando começou a trabalhar, ter renda própria e mudar todo o guarda-roupas.

Além disso, teve o apoio da família, componente fundamental ao enfrentamento de estereótipos e preconceitos. “Meus parentes gostam de mim. Todos. Agora, vou dar início à troca do restante dos documentos e começar a ir pra um projeto da Prefeitura, um inventário participativo cultural onde vamos aprender mais sobre a cultura da nossa cidade e depois fazer vídeos e fotos e apresentar no final do projeto. Além disso, quero focar na busca de um emprego com carteira assinada novamente e priorizar meus estudos”, planeja.

 

“Meu nome me monta, me borda e me ilumina”
Entre pessoas transmasculinas, Gabriel Elias Martins de Sousa Paiva personifica bem o perfil dos atendidos no mutirão da Defensoria. É jovem e procurou a retificação aos 19 anos, bem mais cedo do que boa parte do público atendido no Transforma. “A Defensoria me ajudou a realizar um dos maiores sonhos da minha vida. Estive em um ápice da felicidade que nem sabia que podia sentir. Foram tantas mudanças e situações de constrangimento até chegar onde estou hoje… Renasci oficialmente.”

Ele lembra da infância, marcada por violências de toda ordem por ele, à época, ainda não se compreender enquanto homem trans, sentir-se diferente das outras pessoas e ser sozinho. A questão identitária dificultava as amizades, seja pelas crianças que se afastavam ou pelos pais, que não permitiam aproximação, além da perseguição na escola e de, em casa, ninguém ter informações sobre a transexualidade ser uma realidade.

Ser uma criança trans era ter de provar a própria existência desde cedo. “[Com a retificação] O Elias matou a Elisa e hoje consigo sentir tranquilidade em falar dela e agradecer a ela por ter aguentado tanto, por ter suportado tanto, por ter sido Noah, Théo, Caetano, Miguel, Thaynan e Eliseu. Todos eles foram necessários para o Elias nascer. Ele nasceu, tá forte, quer o mundo todinho e vai conseguir. Já tá fazendo o dele e não vai parar. Assumir e entender quem se é é um processo doloroso interna e externamente, mas aguentamos. E nossa! Como tô feliz de ter aguentado! Como tô feliz de ser eu.”

Com a nova certidão de nascimento entregue no mutirão da Defensoria, Elias se diz livre. Tão logo recebeu a retificação, já deu entrada na mudança em todos os demais documentos. RG, CPF, carteira de motorista, título de eleitor, tudo já está encaminhado para ele ser ele. De fato e de direito. Em todos os lugares além dele próprio. O medo de viver como Elias, principalmente pela possibilidade de magoar a família, o garoto não tem mais.

A cabeça agora está no futuro. “De guichê em guichê a gente vai pegando o que é nosso. Meu nome me monta, me borda e me ilumina devagarinho como luz de lamparina por todos os meus corredores, leve e suficiente. Não existe mais mundo onde eu não seja eu. Tudo precisa nascer. Que os papéis me batizem; que os meus me chamem. Aqui, eu me escrevo quantas vezes for preciso”, poetisa, consciente de ser pra alguém hoje o que não foram pra ele na meninice.

“Quando eu me entendi como uma pessoa trans, eu não tinha referência nenhuma. Lembro que sentia medo e me escondia e vivia em uma eterna assombração pelo fantasma de uma possível descoberta. Até que um dia escutei da minha avó: ‘você não precisava ter escondido; você não está fazendo nada de errado’. E isso mudou tudo. Quando eu vivo assim, abertamente, permeio espaços falando sobre ser uma pessoa trans, converso com meus colegas, família e amigos, quando eu existo, acredito que estou abrindo caminho e sendo referência de possibilidades para outros além de mim. Tenho orgulho, mas tenho noção de que ainda falta muito e que qualquer olhar que não abarque uma reflexão profunda do sistema capitalista, racista, misógino, transfóbico e patriarcal que vivemos é inútil”, sentencia Elias.