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O que a Chacina do Curió mudou na assistência da Defensoria do Ceará às vítimas de violência 

O que a Chacina do Curió mudou na assistência da Defensoria do Ceará às vítimas de violência 

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Você nunca vai saber quando pode ser a última vez que vai ver alguém que ama. Muito menos, prever que sua família vai virar símbolo de dor e de resistência.

Álef Souza Cavalcante, 17 anos
Antônio Alisson Inácio Cardoso, 16 anos
Francisco Elenildo Pereira Chagas, 40 anos
Jardel Lima dos Santos, 17 anos
Jandson Alexandre de Sousa, 19 anos
José Gilvan Pinto Barbosa, 41 anos
Marcelo da Silva Mendes, 17 anos
Patrício João Pinho Leite, 16 anos
Pedro Alcântara Barroso do Nascimento Filho, 18 anos
Renayson Girão da Silva, 17 anos
Valmir Ferreira da Conceição, 37 anos.

Essas são as onze vítimas fatais da Chacina do Curió, outras sete se tornaram sobreviventes de uma madrugada de terror. Para entender o que aconteceu na noite do dia 11 de novembro e na madrugada do dia 12, em 2015, é preciso mais que voltar no tempo e entender sistemicamente a violência urbana e os desdobramentos dela nas instituições.

Foi por conta da chacina do Curió que, em 2017, a Defensoria criou a Rede Acolhe, um programa focado em dar assistência a familiares de vítimas e vítimas sobreviventes de atos de violência, com sede própria e equipe multidisciplinar especializada. À época, o projeto surgiu para lidar com um universo delicado da insegurança, visto que, naquele ano, o Ceará havia registrado 5.133 Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLIs), após relatório sobre esses casos e recomendação do Comitê de Prevenção e Combate à Violência da Assembleia. A Defensoria Pública do Ceará foi a primeira instituição a acolher as recomendações do referido Comitê após a divulgação do relatório.

“Quando foi criada, a Rede Acolhe era uma tentativa de preencher uma lacuna dentro da Defensoria e das instituições, pois não se tinha uma atenção a essas vítimas de violência urbana. Então a Defensoria do Ceará foi a primeira Defensoria do Brasil a pensar em um núcleo que recebesse as vítimas de violência, atendendo a uma recomendação do Comitê de Prevenção e Combate à Violência da Assembleia, que é nosso parceiro até hoje. São mães, irmãs e avós, em maioria, que estão à procura de assistência e amparo. Com o Acolhe, criamos esse programa, fluxos, atendimentos e ampliamos essa rede, porque, como já diz o nome do programa, é preciso acolher e também amparar a luta por justiça dessas pessoas. Assim, nasceu essa primeira experiência e, que, atualmente, só se fortalece”, explica Elizabeth Chagas, defensora geral do Ceará.

No caso da Chacina do Curió, a Defensoria Pública do Estado do Ceará (DPCE) está presente no caso desde o início. O primeiro encontro aconteceu dia 03 de março de 2016, realizado pela defensora pública Gina Kerly Pontes Moura. À época, ela era supervisora do Núcleo de Assistência ao Preso Provisório e Vítimas de Violência (Nuapp) e levou psicólogos e assistentes sociais da Defensoria para o atendimento individualizado dos familiares, no Liceu da Messejana. Dali, selou-se uma parceria com desdobramentos até hoje, inclusive o caso foi a mola que transformou a forma de atendimento às vítimas da Defensoria.

“A Rede Acolhe é algo que preenche uma lacuna de assistência que a Defensoria de todo o Brasil precisa enfrentar. Iniciamos com a experiência adquirida na assistência às mães do Curió, mas hoje já recebemos demandas espontâneas e contamos com uma equipe de defensores, psicossocial e uma rede de amparo que atende e ausculta as demandas dessas famílias, criam laços e uma relação de proximidade, confiança e entendimento do contexto familiar”, pontua Gina.

Ela explica, que desde o início, quando se deparou com aquela situação, percebeu a oportunidade de aprimoramento. “Eu sabia que não bastava apenas nossos conhecimentos técnicos e dar a assistência jurídica necessária. Era preciso acolher, ouvir, estar presente, oferecer o acompanhamento psicológico, ter o suporte da equipe de assistentes sociais, porque foi um crime com um impacto social imenso. E essas mães sempre clamaram por justiça, porque tinham a certeza da inocência dos seus filhos”, pontua Gina.

No dia 26 de maio de 2016, um novo atendimento, desta vez com os defensores Delano Benevides e Natali Pontes. “A Defensoria tem sido nosso único chão, porque não temos apoio de mais ninguém”, relatou à época uma das mães. Assim, começou a busca delas e a da própria Defensoria, em conferir esse apoio. Ainda em 2016, fez a solicitação dos laudos cadavéricos à Pefoce, documentos que já deveriam estar na posse dos familiares. O momento de entrega desses laudos, em junho de 2016, foi marcado por muita comoção.

Em muitos atos e manifestações, desde a data, a Defensoria tem apoiado a luta das mães. A instituição acompanhou o julgamento dos recursos de pronúncia em Segundo Grau, juntamente com as famílias, garantindo o direito à informação do que se passava no processo, traduzindo a linguagem jurídica para uma mais acessível aos familiares. Em 2023, por ocasião do primeiro júri, defensores públicos criaram um GT de trabalho e serão os assistentes de acusação, representando as mães, pais e as esposas do Curió.

Ainda assim, dentro da instituição, foram criados protocolos de atendimento, elaborados uma equipe multidisciplinar focada e especializada no acolhimento às vítimas. O sociólogo e coordenador da equipe técnica, Thiago de Holanda, classifica o projeto como algo que preenche uma lacuna. “No sistema jurídico tradicional, as vítimas de violência não são pessoas que choram, sofrem e têm a vida tumultuada por um contexto de impacto emocional e econômico. Elas são tratadas como uma abstração. São apagadas e não têm a quem recorrer. A Defensoria é capaz de oferecer essa escuta qualificada. Por isso que o Acolhe é tão singular”, destaca.

O impacto da chacina do Curió na vida destes familiares foi transformador também na instituição. Em 2019, a Defensoria deu entrada no primeiro pedido de ação civil pública de reparação à Justiça. Sobre os desdobramentos dessa ação, confira a próxima matéria desse especial que sai nesta quarta-feira (14).

Rede Acolhe – Atualmente, a Rede Acolhe cresceu e teve o espaço físico ampliado após parceria com a Assembleia Legislativa e começa a interiorizar sua experiência. “Isso é importante porque a gente leva para o interior a nossa experiência, a nossa expertise, a nossa metodologia, com uma equipe adequada para fazer um atendimento especializado dessa natureza, sobretudo no que diz respeito a inclusão de pessoas em programas de proteção”, destaca Gina Moura.

Em pesquisa recente, apontou que o público atendido pelo programa é majoritariamente composto por mulheres. As famílias estão inseridas em contextos territoriais diferentes, então a individualidade precisa ser acolhida. A psicóloga da Rede Acolhe, Jéssica Cavalcante, explica a atuação. “Por exemplo, dentro do sistema de justiça, muitas vezes, estes membros da família são vistos apenas como ponte para chegar no autor dos crimes. A Rede Acolhe atua na proteção destes familiares e também na assistência jurídica e psicossocial”, salienta.

A Rede Acolhe hoje integra uma rede intersetorial que busca diminuir a revitimização e os danos causados pela violência, reduzindo os potenciais de ocorrências de novos crimes e amparando os familiares . “A Defensoria é capaz de oferecer essa escuta qualificada e também estudos qualificados para que a gente passe a olhar a realidade das vítimas de violência letal e contribuir para mudanças sensíveis nos entendimentos das instituições e nas políticas públicas de enfrentamento à violência”, explica Elizabeth Chagas.

Entenda o caso – A Chacina do Curió é considerada a terceira maior chacina do Estado, que deixou 11 mortos em diferentes bairros da Grande Messejana e uma série de familiares, sobreviventes e de onde foi criada toda uma rede de amparo em volta do caso. E não sem  luta, provocada pelas assim chamadas Mães do Curió, coletivo de familiares que percorre as instituições em busca de justiça.

A investigação da Polícia Civil e a denúncia do Ministério Público Estadual do Ceará (MPCE) apontam que a chacina teve ligação com uma possível retaliação à morte do policial militar Valtemberg Chaves Serpa. O policial, por volta de 19h50min do dia 11 de novembro, foi morto ao intervir em tentativa de assalto contra a esposa, no bairro Lagoa Redonda. Mais tarde da noite, começam a ocorrer mortes nos bairros da Grande Messejana, de forma aleatória. Não foi provada qualquer relação das vítimas do Curió com a morte do policial.

“Na medida em que passava o tempo, e como já tarde da noite havia cada vez menos pessoas nas ruas, os executores foram escolhendo aleatoriamente as vítimas, o que se traduziu em um típico ‘justiçamento’, culminando com a morte e ofensa à integridade física e mental de várias pessoas absolutamente inocentes e que sequer tinham qualquer envolvimento na morte do Policial Militar”, revela o documento apresentado pelo Ministério Público no processo, que tem mais de dez mil páginas.

Ao todo, 45 policiais foram indetificados e 34 foram pronunciados. Destes, um PM é falecido e 03 conseguiram ir a julgamento pela Justiça Militar. Os outros 30 serão julgados pelo Justiça Estadual, onde quatro vão a júri a partir desta terça, dia 20 de junho. Os próximos júris acontecem nos dias 29 de agosto e 12 de setembro deste ano.

Serviço
Rede Acolhe
Av. Desembargador Moreira, 2930, 3° andar – Dionísio Torres, Anexo IV – Prédio da Procuradoria da Mulher da Assembleia Legislativa do Ceará.

Funcionamento: Segunda à sexta-feira, das 8h às 17h.

Telefones:
(85) 9.8895.5723
(85) 3194.5058
e-mail: redeacolhe@defensoria.ce.def.br