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Da audiência de custódia às Cortes Superiores: DPCE vai até a última instância pelo direito de pessoas presas por ‘pequena monta’

Da audiência de custódia às Cortes Superiores: DPCE vai até a última instância pelo direito de pessoas presas por ‘pequena monta’

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Por furtar quatro carteiras de cigarro de um supermercado, um homem natural de Fortaleza (CE) foi condenado a 1 ano e 4 meses de reclusão pela justiça cearense, em 2015. O caso chegou ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), em setembro de 2020, quando o princípio da insignificância defendido pela Defensoria Pública do Estado do Ceará (DPCE) desde a realização da primeira audiência foi finalmente aplicado.

O valor total dos objetos furtados era de R$13, equivalentes a 1,64% do salário mínimo vigente à época da ação. O ministro relator Rogerio Schietti Cruz destacou em sua decisão “que a punibilidade da conduta responda suficientemente à necessidade de categorizar o comportamento humano que, muito embora constitua um ilícito penal, não deve gerar sancionamento criminal”.

O Brasil é signatário desde 1992 do Pacto de San José da Costa Rica, que versa sobre os direitos humanos e prevê a audiência de custódia. Mas, somente 23 anos depois, em 2015, o país começou a adotar a prática, a partir da Resolução Nº 213, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Na época do furto das carteiras de cigarro, as audiências de custódia ainda não eram uma realidade no Ceará.

Hoje, conforme determinação do CNJ, todas as pessoas presas em flagrante no Brasil devem ser levadas para uma audiência de custódia em até 24 horas. No Ceará, a Vara de Audiências de Custódia de Fortaleza foi criada pela Justiça Estadual há seis anos. Desde então, já foram realizadas mais de audiências de mais de 37 mil pessoas.

Uma delas foi a de uma adolescente de 14 anos, encaminhada à Delegacia da Criança e Adolescente (DCA) após furtar de um supermercado localizado em um grande shopping de Fortaleza produtos de higiene para bebês (condicionador, talco, shampoos e cremes para assaduras). A jovem estava grávida foi surpreendida pelo segurança da loja e encaminhada à delegacia. A defensora pública Amélia Soares da Rocha estava no plantão da Defensoria Pública que acontece nos finais de semana e foi a responsável pela audiência.

“O material furtado não chegava ao valor de R$100 em produtos de higiene para uma criança que estaria por nascer. Trata-se de uma questão de conduta pessoal ou de um trágico contexto pessoal em face da ausência de políticas públicas para a juventude? A adolescente relatou em depoimento que, desde o dia que descobriu a gravidez, sem apoio do pai da criança e sem perspectivas, começou a pedir nas portas de shoppings e nos supermercados. A situação demonstra que a adolescente precisa de política pública de proteção à juventude e não de internação”, argumentou Amélia.

O pedido da defensora pública foi fundamentado no princípio da insignificância penal e imediatamente aceito pelo juiz plantonista, que indeferiu o pedido de internação provisória da adolescente, mediante entrega e assinatura de termo de responsabilidade pelos pais ou responsáveis.

Situações dessa natureza são realidade no encontro com a Defensoria Pública para uma solução. O defensor público Delano Benevides, titular na Defensoria da Vara de Custódia, desde a sua implementação no Ceará, relata casos de pessoas sendo presas constantemente por furto de objetos de pouco valor.

“Não é raro que pessoas sejam presas por crimes assim. Na prática, aquelas que praticam crimes de bagatela se encontram em um estado de vulnerabilidade, seja ele social ou psíquico, em estado de dependência química ou com algum distúrbio psicológico. Com o advento da pandemia do novo coronavírus, esse público aumentou. São pessoas que a pandemia descortinou: agravou a desigualdade social, elas não recebem auxílio e não têm apoio por parte do Estado, estão sem políticas de integração social e, muitas vezes, para não passarem fome, acabam cometendo esses pequenos furtos, até mesmo por comida”, destaca Delano.

Ele explica que o princípio da insignificância adotado nessas situações é uma construção de doutrina jurídica e jurisprudência, mas não há lei que regulamente o tema, prevendo que determinado comportamento seja considerado insignificante e, por isso, não deva ser considerado crime. E é aí que a questão começa a se complicar: não há critérios objetivos que dizem quando o comportamento por ser abarcado pelo princípio da insignificância.

“O princípio surge quando a doutrina percebe que algumas condutas não lesam o bem jurídico (os interesses protegidos pelo Direito) de forma a justificar uma movimentação do Estado. A conclusão é que algumas lesões eram tão pequenas que o custo que seria gasto pelo Estado, a fim de levar o processo em frente, seria muito maior do que o custo da lesão causada”, afirma o defensor, que lembra que esses custos são suportados por toda a sociedade.

O defensor explica, no entanto, que se a autoridade policial liberar a pessoa presa nesse contexto por interpretação própria, assim que receber o flagrante, o Ministério Público pode entender que o delegado deixou de cumprir um ato de ofício, que seria efetuar a detenção da pessoa.

É comum que os delegados façam a autuação. Às vezes, até arbitra-se uma fiança, mas a pessoa não tem condições de pagar. É possível acompanhar na imprensa muitos casos recorrentes em que o STJ e o STF determinam trancar as ações penais por conta do princípio da insignificância.

Quando a pessoa permanece presa, cabe à defesa se utilizar dos remédios cabíveis (pedidos de relaxamento de prisão, de revogação de prisão preventiva ou Habeas corpus), até chegar às cortes superiores.

Na Defensoria esta é a atuação do Núcleo de Assistência aos Presos Provisórios e às Vítimas de Violência (NUAPP). O defensor público Jorge Bheron Rocha, titular do núcleo, explica o que acontece ao recorrer até as instâncias superiores para provar um crime de bagatela. “Após uma primeira sentença negativa do juiz, o defensor público de primeiro grau elabora o recurso de apelação. O defensor de segundo grau, mesmo diante do acórdão negativo da câmara criminal do Tribunal de Justiça, acredita na tese e encaminha para Brasília, quando, só então nossa tese é reconhecida. É a demonstração de que a gente deve acreditar no direito dos nossos assistidos e levar mesmo adiante até as cortes superiores. Isso dá segurança aos nossos assistidos, que eles podem acreditar na Defensoria Pública, porque nós, como defensores, vamos encampar a defesa integral e gratuita como a Constituição diz”, destaca o defensor.

Delano Benevides complementa. “Não faz nenhum sentido manter a máquina do sistema de justiça por conta disso. O processo penal é extremamente caro para o Estado, em torno de 2.500 reais. Sob o ponto de vista jurídico, estamos diante de uma questão de pouquíssima ofensividade, a exemplo do crime de furto. Além disso, a permanência dessa prisão vai contribuir decisivamente ainda para uma situação já dramática no nosso sistema prisional: colocar pessoas que não deveriam ser presas, pois estão à margem da sociedade e das políticas públicas de oportunização de emprego e renda, dentro de um sistema prisional que já está colapsado”.

Essa é a segunda pauta da Série Por tão pouco: O crime de bagatela e a justiça social com o objetivo de discutir os desdobramentos de prisões que não deveriam existir por serem decorrentes de casos cujo tratamento deveria ser social e não jurídico. As pautas corroboram para o Dia da Justiça Social dia 20 de fevereiro, data em que se relembra a reflexão sobre o enfrentamento da pobreza, a discriminação, o desemprego e de qualquer outra forma de exclusão ou marginalização.