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Primeiros cotistas reforçam Frente Negra da Defensoria  e diferenciam atuação a partir da própria raça

Primeiros cotistas reforçam Frente Negra da Defensoria e diferenciam atuação a partir da própria raça

Publicado em
Texto: Bruno de Castro
Fotografias: ZeRosa Filho
Colagem/Identidade Visual: Valdir Marte

 

Tem um provérbio iorubá que retrata bem o significado da recente chegada de pessoas negras a espaços de poder no Brasil. Ele ensina: “experimenta o que ninguém experimentou quem faz o que ninguém fez”. Esses dizeres africanos revelam a realidade, sobretudo da esfera pública, no que diz respeito a políticas afirmativas. Em uma sociedade na qual as cotas raciais foram implementadas no ensino superior há somente 12 anos (em 2012) e em concursos há menos tempo ainda, apenas dez anos atrás (em 2014), o enegrecimento institucional tem um longo caminho pela frente. Em contrapartida, já dá resultados concretos.

É neste contexto que a partir desta segunda-feira (18/11) a Defensoria Pública do Ceará discute a urgência de as instituições, especialmente do sistema de justiça, universo ao qual pertence, serem mais diversas do ponto de vista racial. E faz esse exercício observando a própria experiência com a primeira turma de membros cotistas negros da história da DPCE, que se uniu aos negros já existentes na instituição, aqueles cuja entrada não se deu por cotas raciais.

Em um trocadilho histórico, todos compõem a Frente Negra da Defensoria, tal qual foi a primeira geração da Frente Negra Brasileira, em meados de 1930, na luta pelos direitos da população mais vulnerabilizada do país. “A maioria das pessoas atendidas pela Defensoria é negra. Então, elas vão se enxergar em mim de alguma forma e, talvez, se sintam mais à vontade. O atendimento pode ser mais reconfortante e eu posso passar algo da minha vivência, algo que só uma pessoa negra sabe o que é sentir, pra que essa pessoa tenha mais esperança. Porque a raça é uma característica muito relevante. Ela estreita laços. E eu quero usar minha representatividade de mulher negra para oferecer o melhor atendimento às pessoas negras que chegarem a mim. Por isso, acho que ter mais defensores negros faz com que a população se aproxime da Defensoria como um todo. Se mais de 50% da população é negra, nossa instituição tem que ser cada vez mais parecida com a população que atende”, afirma a defensora Álice Vivianny Lima, a mais recente integrante da Frente.

 

Defensora Álice Vivianny é do Cariri atua em Juazeiro do Norte

O CONTRADITÓRIO ENRIQUECEDOR
Dentre os 12 mil inscritos no concurso, os primeiros cotistas empossados foram Rayssa Cristina, Raul Sousa, Glauber Leitão, Paulo Rocha e Daniela Melgaço. Era novembro de 2023, mês de Zumbi e da Consciência Negra, e eles assumiam os cargos. Três meses depois, Mike Chagas se uniu ao grupo. E, em outubro último, Álice uniu-se aos colegas defensores negros cotistas. Juntos, eles inauguraram um tempo na DPCE no qual é possível disputar vagas com outros candidatos negros de igual pra igual: concorrer no mesmo alto patamar de excelência em todas as provas e ser avaliado por uma banca de heteroientificação.

Até serem nomeados(as), eles(as) enfrentaram a segunda maior concorrência do concurso: 200 pessoas por vaga, colocando por terra o mito de que cota racial é um caminho mais curto, um privilégio, uma facilidade para pessoas negras serem aprovadas. Não é. Ao contrário. As etapas exigem as mesmas capacidades, diferenciando-se da ampla concorrência pelo fato de negros disputarem somente entre si. E a chegada dessas pessoas às instituições representa um novo jeito de praticar a difícil busca por justiça social, que se entende hoje como impossível de ser feita sem considerar questões raciais e outras, como território, identidade de gênero, geração etc.

“Quando a gente fala do Direito, fala de algo muito estratégico dentro do Estado. Porque Direito é interpretação. E interpretação que nos faz ganhar ou perder. Mas a operação do Direito se dá não no abstrato. Ele é operado por humanos. E humanos que estão na sociedade; que ocupam um lugar social. Quantas pessoas negras foram injustiçadas porque quem operou o Direito não interpretou a norma a partir do lugar social que ocupava? Quantas vezes pessoas negras sofreram mais por não terem alguém que conseguia ver por outro ângulo? A falta de pessoas negras e com consciência racial operando o Direito impediu a gente de avançar. Por isso, implementar cota racial é permitir o contraditório. E um contraditório enriquecedor”, analisa um dos maiores pesquisadores do Brasil sobre políticas afirmativas, o doutor em História e professor Arilson Gomes.

Atuante na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (Unilab), ele enaltece o papel estratégico das cotas raciais em um estado como o Ceará, que nega a existência do povo negro quando perpetua a máxima de ter abolido o sistema escravocrata antes do restante do país pelo fato de não haverem negros aqui. Isso, Arilson pondera, abre margem para a interpretação de que negros não tiveram influência na formação da sociedade local, versão essa que ganha adesão popular ao ser amplamente reproduzida por intelectuais, imprensa, literatura etc e unir-se ao desejo, também estimulado por essas instituições, de o brasileiro ter uma descendência europeia em vez de uma ancestralidade africana.

“No Ceará, a movimentação em torno das cotas é muito recente porque o Ceará se entrincheirou com a versão do “não tem negro aqui” para evitar que essa discussão chegasse. Mas ela chegou. E chegou para que as coisas avancem. Afinal, se tem cota, tem negro. Por isso, a gente quer que as estatísticas de ingresso de pessoas negras na universidade e no serviço público aumentem. Mas não só isso. Essas pessoas têm que ter consciência do papel político transformador delas. Se não tiverem essa consciência, elas fatalmente vão reproduzir as normas do racismo. Então, cota racial não é ‘só’ sobre ocupação de vaga. É sobre saber que é negro e mobilizar esse pertencimento a uma ação de aperfeiçoamento dos lugares”, explica o historiador.

 

Arilson Gomes é doutor em história, professor da Universidade Internacional da Integração Afro-brasileira (Unilab) e um dos maiores pesquisadores sobre políticas afirmativas do Brasil [FOTO: Arquivo Pessoal]

TRÊS DIAGNÓSTICOS, MUITAS REFLEXÕES
Elaborada pelo Conselho Nacional dos Defensores Públicos Gerais (Condege) em parceria com o Colégio Nacional de Corregedores Gerais (CNCG), a Defensoria Pública da União (DPU) e a Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos Federais (Anadef), a
Pesquisa Nacional da Defensoria Pública 2024 indica que o perfil majoritário da categoria no Brasil é de pessoas brancas (74%). Negros são 22,3%. Constatação essa que tem feito a maioria dos concursos recentes da Defensoria nos estados ter reserva de vagas para pessoas negras e outras etnias/raças. Uma ação prática para tornar as instituições mais diversas.

Esse mesmo estudo revela que, no Ceará, 59,2% dos defensores se declaram brancos. Os dados são de 2021. Antes, portanto, da entrada da primeira turma cotista negra da instituição. Há três anos, nenhum membro da DPCE se dizia preto (negro de pele escura). Todos os negros (32,8%) eram pardos (de tom de pele mais clara) e haviam ingressado sem a vigência de políticas afirmativas, já que à época elas não existiam.

Outro levantamento de referência para pensar a questão racial no sistema de justiça brasileiro é o Censo do Judiciário. Elaborado em 2023 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) a partir da autodeclaração de juízes, desembargadores e ministros, o documento categoriza como brancos 82,7% dos magistrados brasileiros. Negros são somente 15%.

Todos esses números contrastam com os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IGBE) que, no Censo 2022, mostram um Ceará de maioria negra (71,5%, considerando a população negra enquanto soma de pretos e pardos). Ou seja: somente uma efetiva política de cotas raciais poderá reduzir essa distância estatística entre brancos e negros no que diz respeito à representatividade institucional. Estudos apontam que uma cota de 30% no serviço público (em vez dos atuais 20%), considerando também indígenas e quilombolas, anteciparia a paridade racial brasileira para 2047. Há a expectativa de essa ampliação ser concretizada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva nesta quarta-feira (20/11), em meio às comemorações do Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra.

 

Zelma Madeira é doutora em sociologia, professora da Universidade Estadual do Ceará (Uece) e secretária da Igualdade Racial do Ceará [FOTO: Ascom/Seir]

Uma das autoras da lei que instituiu, em 2021, as cotas raciais nos concursos públicos do Ceará, a secretária estadual de Igualdade Racial, Zelma Madeira, pontua que a sociedade brasileira é, ainda hoje, racialmente hierarquizada. Isso significa que pessoas brancas têm mais acesso a oportunidades e vivem em melhores condições, como comprovam inúmeros indicadores sociais nos quais a população negra está nas situações de maior vulnerabilidades.

A lógica das cotas raciais é: se foi o Estado brasileiro quem promoveu essa desigualdade racial ao permitir/financiar o tráfico negreiro transatlântico e a escravização afro-indígena, abolida há somente 136 anos, e ao proibir, inclusive por força de lei, a população negra de frequentar ambientes escolares, como ocorreu na Constituição de 1824, é esse mesmo Estado, de 524 anos, quem tem a obrigação de desconstruir essa realidade. Ou ainda: se a raça dificulta o acesso de pessoas negras a direitos fundamentais, é a cota um instrumento legal para viabilizar alguma reparação pela promoção da igualdade material dos sujeitos e, assim, democratizar o país tratando desigualmente os desiguais na medida dessa desigualdade.

Em resumo: cotas raciais são um instrumento de emancipação de pessoas negras. E não só das por elas contempladas, pois as consequências positivas, como acesso à educação formal, à qualificação profissional e à estabilidade do serviço público, devem reverberar nas famílias dos cotistas por gerações. “As cotas são um tema de tensionamento porque elas mexem com a estrutura das instituições. Isso dói porque o racismo, pra que ele exista, necessita dessas instituições. Ele não sobrevive do nada. Mas as instituições são feitas de pessoas. E, do ponto de vista histórico, as instituições brasileiras são compostas de pessoas brancas. Então, o racismo está impregnado nas instituições porque tem agentes que o praticam. Por isso, as cotas são uma ferramenta sábia. Elas proporcionam que pessoas negras entrem e alterem essas instituições”, reflete Zelma.

Mas essa mudança na cor (e na operação) das instituições não acontece da noite para o dia. Afinal, entre a invasão europeia ao Brasil, em 1.500, e a implementação das cotas raciais pela Lei Federal n° 12.711/2012, foram 512 anos. Nós temos, portanto, mais história de exclusão das pessoas negras de espaços de poder do que de garantia da chegada delas nesses locais. “Nós temos que pensar na estrutura e não só no indivíduo. Porque não é só um defensor. É um defensor negro que chega com um projeto coletivo e pensa isso a partir da própria raça. É um projeto societário no qual ele atua para mudar a estrutura atual. Não pode ser uma representatividade vazia, porque aí você cai no identitarismo, que não trata de coisas profundas e muitas vezes só quer “lacrar” porque não abraça o coletivo”, finaliza a secretária Zelma Madeira.

 

Defensor Mike Chagas é natural do Rio de Janeiro e hoje atua em Icó

O defensor Mike Chagas classifica o próprio ingresso na DPCE pela política de cotas raciais como um posicionamento político em meio à histórica brancura do sistema de justiça brasileiro. “E entro pra mudar a instituição. Porque a partir do momento em que me reconheço negro e passo a exercer um cargo público, eu trago comigo toda uma representatividade. Quando a gente entra por cota, a gente tem que ser um operador de transformação social e representar as nossas bandeiras. É muito importante que a gente marque o nosso espaço e fale pela gente, porque nós, negros, falamos de um lugar social que 90% dos nossos colegas não sabem. Nós temos um lugar de fala que pessoas brancas não têm. O ponto de partida é diferente. E isso interfere do atendimento à minha atuação processual”, reflete.

Ele avalia que o Direito ainda é um campo de atuação no qual a perspectiva racial é negligenciada. É deixada de fora do processo mesmo quando se está diante de um caso de perfilamento racial, por exemplo, que ocorre quando alguém é abordado pela polícia por conta de uma suspeita cuja justificativa é o fato de ser negro. “Eu ser negro me permite ter um olhar mais apurado quanto a essas questões. Porque pessoas brancas não se preocupam com a própria cor. Elas nascem pessoas. Mas nós nos descobrimos negros em algum momento da vida. Então, a gente, que tem vivências raciais, precisa trazer essas questões pra atuação na Defensoria. A gente não pode continuar na lógica da universalização do Direito, como se ele pudesse ser aplicado a todos da mesma maneira. Nosso papel, enquanto defensor negro, passa por apontar para o constrangimento de que isso não está sendo observado pelos demais órgãos”, finaliza Mike Chagas.

Esta reportagem integra o especial Frente Negra da Defensoria, que narra as histórias de vida dos primeiros cotistas negros da DPCE e revela bastidores do ano inicial de atuação deles. Para ler as demais matérias, clique aqui.