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“O encarceramento do microtráfico é um grotesco absurdo”, diz juiz paulista Marcelo Semer que estará esta semana em Fortaleza

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No próximo dia 17 de maio, a Defensoria Pública do Estado do Ceará, em parceria com a Escola Superior da Defensoria Pública (ESDP) e a Associação dos Defensores Públicos do Ceará (Adpec), realiza o 2º Encontro dos Defensores Públicos do Estado do Ceará. O evento será realizado no hotel Gran Marquise, dedicado a discussões afeitas à carreira, e integra as comemorações pela passagem do Dia do Defensor Público, comemorado no dia 19 de maio.

A palestra de abertura será sobre “Os desafios institucionais da Defensoria Pública diante dos novos tempos” com Marcelo Semer, juiz de Direito, e Élida Lauris, doutora pelo Centro de Estudos Sociais e Faculdade de Economia, da Universidade de Coimbra. A mesa será presidida pela defensora geral do Estado do Ceará, Mariana Lobo.

Juiz do Tribunal de Justiça de São Paulo há quase 25 anos, Marcelo Semer é também escritor e autor de “Entre Salas e Celas”, um livro que narra suas experiências com réus e vítimas em audiências. Em entrevista exclusiva à Defensoria, o juiz aponta soluções para reverter os índices de aprisionamento e criminalidade no país. “Os juízes relutam em aplicar as minorantes do tráfico, aplicam penas mais pesadas que o necessário, confiam cegamente nos policiais, tudo isso em situações de pouca gravidade e que não provocam nenhuma alteração na sociedade. O encarceramento do microtráfico é um grotesco absurdo”, ressalta o juiz na entrevista

Ao longo da entrevista, o juiz e escritor criticou o Projeto de Lei Anticrime, elaborado pelo ministro da Justiça do Brasil, Sérgio Moro. Para Semer, o projeto “é irresponsável” e passa longe de aprofundar os problemas em busca de soluções, como de fato deveria. “O projeto é um horror. Deveria ter sido rejeitado de plano. Juridicamente é muito fraco, uma série de atecnias. Surpreendente, Moro parece conhecer menos o direito penal do que a própria língua portuguesa, onde vem derrapando com frequência. O projeto juntou duas subfilosofias: bandido bom é bandido morto e os fins justificam os meios. Não podia mesmo ser bom”, critica.

Marcelo Semer joga luz no lado humano por trás de audiências e destaca sua postura durante os julgamentos. “Eu me sinto um humanista ao julgar e sempre procurei atentar para a observância dos limites constitucionais e para as provas realizadas”, ressalta. Além disso, estima a função do defensor público e deixa um recado aos presentes. “Não abandonem a ausculta da sociedade civil, não percam o caráter mais estimulante do defensor: sua natureza anfíbia, pé na terra para ouvir o povo, e transformar as necessidades no discurso da justiça”, frisa.

 

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O juiz Marcelo Semer debate com os defensores públicos estaduais em evento que acontece nesta sexta (17 de maio)

Leia a entrevista completa.

Furtos de chinelos, biscoitos, peças de roupas, material de higiene, alimentos. Espalhados pelas celas do país estão pessoas presas por furtos de baixo valor, mas que geram um gasto excessivo para o Estado e que por vezes ficam estigmatizadas por ter passado pelo sistema prisional por anos, fora a questão das facções. Muitas vezes o conceito de insignificância não é levado em consideração pelos magistrados brasileiros. Qual sua opinião sobre este tema tão relevante que impacta de forma direta na superpopulação prisional?

A liberdade é um bem importante para ser tirado por tão pouco. Penso que punir criminalmente tais condutas ofende o princípio basilar da Constituição, que é a dignidade humana como objetivo da República. Na maioria dos casos, aliás, trata-se apenas de furtos tentados e muitas vezes, de claro estado de necessidade. Não raro, são hipóteses de crime impossível, em que o furtador é vigiado tão cedo que é inviável conseguir consumar o crime. Penso que muito tribunais tem uma visão pré-constitucional do direito penal. E se baseiam na ideia de que, se não há previsão expressa em lei, não pode haver aplicação do princípio. Há dois erros básicos nesta argumentação: primeiro, a ideia de que os princípios são superiores às regras e, portanto, mesmo implícitos têm valor de diretriz. Segundo, o princípio da legalidade é mecanismo de controle da ação do Estado sobre o indivíduo, não o reverso. Portanto, a legalidade limita o poder do Estado, não existe para limitar a liberdade. Assim, pouco importa se o princípio está descrito na lei: deve ser aplicado porque é uma decorrência do nosso sistema, o que é autorizado pelo próprio art. 5º, da CF. O STF já o reconhece faz tempo, mas tem criado uma série de empecilhos, como o de obstar sua aplicação nos casos de réu reincidente. Se a insignificância exclui a tipicidade, não faz diferença seja ele reincidente ou não. O curioso é que, embora exista um limite bem reduzido para a jurisprudência reconhecer a insignificância em furtos, por exemplo, quando se trata das infrações federais de descaminho, por exemplo, o piso é de R$ 20.000,00 (valor mínimo que move a União em execuções contra seus defensores). Por fim, entendo que o direito penal tutela em demasia a propriedade, muito mais do que a vida, a integridade física ou mesmo a liberdade. Mais uma razão para essa ampla aplicação.

O senhor se considera um juiz liberal com tendências abolicionistas, como tem sido lidar com este “rótulo” em um momento tão intolerante e punitivista?

Exerci a judicatura criminal por mais de duas décadas, quase vinte e cinco anos. Fui aprendendo ao longo dos anos e estabelecendo conceitos e limites. Penso que o direito penal traz muito mais danos que soluções, mais sofrimento que recompensas, então seu emprego deve ser evitado máximo. O custo social é alto e o benefício é baixo. Tem muito pouco a ver com justiça e quase não impacta em uma solução melhor para a sociedade, para a vítima ou para o réu. Não acho que seja importante o rótulo. Eu me sinto um humanista ao julgar e sempre procurei atentar para a observância dos limites constitucionais e para as provas realizadas. Não devemos julgar por medo ou pressão, nem para dar exemplos. Importante é ter sensibilidade de descobrir em cada julgamento os seres humanos que estão envolvidos. E nunca deixar a Constituição de lado. Abolir o direito penal poderia ser muito bom, já que resolve menos problemas que causa. Mas é um caminho muito longo. Usá-lo com prudência já seria uma grande etapa.

 A superpopulação carcerária do Brasil continua em plena ascensão. O Brasil possui mais de 725 mil pessoas presas, ficando atrás apenas da China (1,6 milhão) e dos EUA (2,1 milhão) em população carcerária. Qual  saída que o senhor vislumbra para o Direito Penal e no âmbito das políticas para de fato impactar em uma possibilidade de diminuição destes índices de aprisionamento?

Não vejo outra saída que não reverter a legislação sobre drogas. Pode ser paulatinamente, empregando os melhores exemplos ou combinando as soluções de fora de acordo com nossas particularidades. Mas sem isso, dificilmente vamos escapar do encarceramento em massa. Droga representa quase 30% hoje do sistema prisional. O Brasil é a terceira população prisional do mundo, mas em termos de grandes populações, é a única que continua em pleno crescimento. Se continuarmos com essa irresponsabilidade, seremos os campeões mundiais, sem dúvida. Esse projeto apresentado pelo Ministro da Justiça, extremamente encarcerador, é irresponsável; mas o fato é que mudando ou não as lei, os juízes fixam penas em excesso. A pesquisa que conclui para o Doutoramento na USP mostra isso: os juízes relutam em aplicar as minorantes do tráfico, aplicam penas mais pesadas que o necessário, confiam cegamente nos policiais, tudo isso em situações de pouca gravidade e que não provocam nenhuma alteração na sociedade. O encarceramento do microtráfico é um grotesco absurdo.

Quanto ao clamor nacional por teorias criminológicas mais duras aos infratores, como o senhor diagnostica esta situação? Como tem visto o Projeto de Lei Anticrime, de autoria do Ministério da Justiça, que tramita no Congresso Nacional?

O projeto é um horror. Deveria ter sido rejeitado de plano. Juridicamente é muito fraco, uma série de atecnias. Surpreendente, Moro parece conhecer menos o direito penal do que a própria língua portuguesa, onde vem derrapando com frequência. O projeto juntou duas subfilosofias: a bandido bom é bandido morto; os fins justificam os meios. Não podia mesmo ser bom. Não é nada anticrime, é a favor do crime. Vai aumentar enormemente o encarceramento e com isso dotar as facções criminosas de um exército ainda maior de jovens recrutas; no campo do homicídio, não vai reduzir os crimes, apenas legalizá-lo. Com um índice altíssimo de violência policial, qual a solução encontrada: permitir que a polícia mate ainda mais. E vem conectado a vários “decretos” ilegais que expandem a posse e o porte de armas. Estão autorizando um bangue-bangue e estimulando a ideia da morte como elemento de combate ao crime. Não é só irresponsável o projeto (que mente ao dizer que não vai produzir custos), mas assassino.

O senhor era presidente da Associação dos Juízes pela Democracia  (ADJ) e participou de várias assembleias que culminaram na aprovação da atual Constituição Brasileira. O senhor viu a Defensoria Pública “nascer” e como vê atualmente a instituição e seu papel?

Eu fui presidente da AJD entre 2003 e 2005 e vi nascer a Defensoria de São Paulo, que demorou 18 anos além do prazo concedido pela Constituição do Estado (6 meses). Chegou tarde, mas chegou bem. As Defensorias, todas elas, são absolutamente essenciais. É a possibilidade de que os mais vulneráveis possam ter voz na justiça. Confio muito no trabalho dos defensores públicos, esperando que a instituição possa ser mais fortalecida em todo o país. Todos ganham com isso. Mas pelo que acompanho, isso não tem sido nada fácil. Acho que o salto institucional já foi importante: da criação à autonomia, das causas individuais à competência coletiva.

O senhor viveu durante seus primeiros 19 anos dentro do Regime Militar Brasileiro. Qual a comparação que o senhor faz daquela época com os dias de hoje ? O senhor acredita que podemos viver períodos de perdas de direitos e retrocessos? O senhor olha para o futuro do país e vê o que ?

Votei pela primeira vez para presidente em 1989, quando já tinha 23 anos. Em 1984, ainda na faculdade, participei da histórica campanha das Diretas Já, infelizmente derrotada. Tínhamos menos liberdade e menos democracia. Mas mais esperança. Sabíamos que a ditadura estava com seus dias contados e um novo pais prestes a ser construído. Sinto que meus filhos tenham que viver, mais ou menos com a mesma idade, um sentimento contrário: a ideia de um futuro sombrio. Hoje, honestamente, não consigo ver futuro nenhum. A Constituição está sendo despedaçada, quando não simplesmente ignorada. A ditadura que tanto feriu e tanto matou está sendo celebrada. O estado democrático se esfacelando. É torcer para que nossas instituições sobrevivam a esta fase e possamos recuperar, depois, o tempo perdido.

Qual a mensagem que o senhor deixa para os defensores públicos cearenses?
Um enorme agradecimento pelo convite, parabéns pelas comemorações. Mantenham-se atentos e vigilantes. A população mais vulnerável precisa muito de vocês e vocês certamente estão à altura para suas missões. Não abandonem a ausculta da sociedade civil, não percam o caráter mais estimulante do defensor: sua natureza anfíbia, pé na terra para ouvir o povo, e transformar as necessidades no discurso da justiça.

Serviço
2º Encontro dos Defensores Públicos do Estado do Ceará
Data: 17 de maio
Local: Hotel Gran Marquise – Av. Beira Mar, 3980 – Mucuripe,

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