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A comunicação enquanto direito

A comunicação enquanto direito

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Setenta e três anos depois de a Organização das Nações Unidas (ONU) considerar a comunicação um direito fundamental a qualquer pessoa, foi justo um equipamento dado inúmeras vezes como obsoleto que mostrou força e provou o quanto de função social ainda tem a oferecer. O rádio permitiu à história de Angelo um desfecho possível, assim como ocorre com as milhares de pessoas que chegam à Defensoria porque ouviram no noticiário, ainda no aparelhinho de pilha, a chance de serem atendidas.

No caso do menino mensageiro de Quixeramobim, o que aconteceu, na verdade, foi um encontro de tecnologias. Ao ver no Whatsapp da mãe uma reportagem sobre a distribuição de cestas básicas em comunidades vulneráveis da zona rural do município, o garoto teve a ideia de escrever uma carta endereçada à juíza da cidade, diretamente envolvida na causa.

Ele redigiu o texto. Dezessete linhas e um sonho que, de tão simples, se torna ainda mais bonito: ganhar o sobrenome do padrasto. Não fosse o garoto um ouvinte assíduo de rádio, o rompante de levar a redação à estação da cidade, distante 50 quilômetros, talvez não acontecesse. E, assim, o desejo de deixar de ser Angelo Ravel Nunes de Sousa e passar a ser Angelo Ravel Nunes de Sousa Moraes sequer sairia do papel.

 

 

A carta, portanto, não seria lida, a magistrada não tomaria conhecimento do pedido, o caso não chegaria à Defensoria Pública, o processo não existiria e o garoto deixaria de ser tão feliz quanto possível com o novo nome. “O trabalho do defensor e da defensora que atua no Interior tem relação direta com a comunicação, tanto a que a própria instituição faz, nos seus canais oficiais, quanto com a imprensa. Isso aproxima muito nosso trabalho do povo. O rádio é uma força importante para zona rural. É um meio de chegarmos a quem está muito distante dos grandes centros urbanos e vive situações de vulnerabilidade, às vezes, inimagináveis. O Angelo acreditar nisso é a prova do quão necessário é esse elo entre Defensoria e meios de comunicação, e como a imprensa é um pilar fundamental de sustentação da nossa democracia”, afirma a defensora geral Elizabeth Chagas.

Antes de atuar na capital cearense, a defensora geral passou por Várzea Alegre e Crato, ambas cidades da Região do Cariri, e Maranguape, na Região Metropolitana de Fortaleza. Trajetória similar a de todos os defensores e defensoras do Estado, que iniciam a carreira em comarcas interioranas. Locais onde a influência e a função social do rádio são grandes mesmo com o poder e o imediatismo das redes sociais digitais.

No Brasil, a primeira operação radiofônica aconteceu em 1923. Há 89 anos, portanto. E, em quase duas décadas e meia de existência da Defensoria do Ceará, o rádio mostrou-se um meio de comunicação fundamental ao alcance dos serviços defensoriais. “O rádio é um parceiro fantástico nosso. Quando eu entrei pra Defensoria Pública e atuava em Tauá, usava a rádio para encontrar os assistidos. Porque o interior é muito grande e em vários municípios há distritos ou assentamentos mais distantes que, muitas vezes, as pessoas mais vulneráveis só conseguem receber informações do mundo lá fora por meio do rádio. Tivemos o advento da Internet, mas o rádio não morreu. Pelo contrário. Ele mostra o seu poder a cada dia e vai se fortalecendo”, avalia o defensor José Aníbal de Carvalho Azevedo.

Na DPCE há uma década, ele atua hoje na 1ª Defensoria Criminal do Crato. Mas já passou por Itapajé, Tauá, Barbalha e Várzea Alegre. Em todas, essa relação com o rádio e com a imprensa local sempre foi marcante. “Tenho consciência do poder da rádio desde cedo. Quando eu tinha 16 anos, isso foi em 1987, minha avó morava na zona rural de Maranguape e minha mãe sempre mandava encomendas pra minha avó pelo ônibus que fazia a rota nas localidades. Teve um dia que o ônibus quebrou e as encomendas não iam chegar. Minha mãe ficou apreensiva porque queria avisar. E eu tive a ideia de ligar para a rádio. Embora minha avó não estivesse ouvindo, eu tinha certeza que alguém ia ouvir o recado e ia falar pra ela. E foi exatamente isso que aconteceu. Em menos de duas horas, minha avó recebeu o recado. Lembro que fiquei famoso na localidade e todo mundo começou a usar a rádio para se comunicar”, rememora Aníbal.

Enquanto defensor, ele lembra de diversos momentos nos quais o poder do rádio foi essencial para a solução de problemas de pessoas que já tinham perdido a esperança. “Eu fazia a mesma coisa que fiz quando tinha 16 anos com a minha avó: dava algumas informações sobre a pessoa, onde ela morava, falava um pouco do processo, sem passar detalhes, óbvio, porque era algo muito individual, e pedia para a pessoa me procurar. A cada dez recados, oito eram respondidos. No outro dia, o cidadão estava na porta da Defensoria porque me ouviu no rádio”, frisa.

Hoje atuante na 1ª Vara Cível de Itapipoca, o defensor público Raphael Esmeraldo Nogueira já passou por Nova Russas, Ipueiras e Tauá. Nos 11 anos nos quais é membro da DPCE, ele atesta poder do rádio que nem os principais telejornais têm no Interior. É pelas emissoras que muitas informações da Defensoria, em especial no contexto pandêmico imposto desde 2020, chegam à população mais carente e isolada.

“É importante os defensores públicos, principalmente aqueles que atuam no interior, terem um canal com a rádio local porque antes de os apresentadores falarem qualquer informação a respeito da Defensoria eles me ligam para esclarecer primeiro, para não repassar nenhuma informação equivocada. E eu faço uso desse serviço também. Em várias situações, quando não consigo localizar o assistido e o processo está prestes a ser arquivado, eu mando ofícios para as rádios locais com a relação de pessoas que precisam procurar a Defensoria. Depois que os apresentadores leem esses nomes nos programas, essas pessoas aparecem aqui porque ouviram ou porque alguém ouviu e falou”, afirma Esmeraldo.

Essa alta influência do rádio é reflexo também de um hábito antigo do povo sertanejo, de gente como o menino Angelo e a família: acordar cedo para ouvir a rádio. Enquanto o café fica pronto, o noticiário corre. “O alcance aqui é maior que a televisão e o rádio tem uma função de cidadania gigante, tem uma função social muito forte. O rádio ainda é um dos sistemas de difusão mais utilizados e acompanhados pela população, em especial nas cidades distantes e nas comunidades rurais. A existência de um espaço dedicado à Defensoria Pública serve para reforçar os laços sociais e, acima de tudo, garantir que as pessoas tenham a devida instrução acerca de seus direitos. É um mecanismo de efetivação da educação em direitos que leva o atendimento da Defensoria a todos que necessitam, até os locais mais remotos”, complementa o defensor.

No caso de Angelo, morador de uma dessas localidades remotas, o envio da carta não aconteceu só uma vez. O garoto confia tanto no poder da comunicação popular que no fim do ano passado enviou outro textinho à emissora de Quixeramobim pedindo para realizar um sonho também nada comum. E conseguiu.

O apresentador do programa recorda. “A gente pediu que as crianças enviassem cartas ao programa fazendo algum pedido pra os ouvintes adotarem. Todas pediram brinquedo, boneca etc. Ele não. Ele só fez um: conhecer a prefeita de Madalena. Deu ene motivos. E ela acabou indo na casa dele. Agora, de forma surpreendente, a mãe dele chegou com esse novo pedido. Eu fiquei espantado porque não é uma coisa comum uma criança pedir pra trocar o nome. Li a carta no ar, enviei pra juíza por Whatsapp e ela se mostrou muito surpresa com o pedido. Mas a gente percebe que ele é um garoto muito desenrolado. Ele adotou o pai de coração”, pontua o radialista Fabiano Barros.