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A diferença entre ter filho e ser pai

A diferença entre ter filho e ser pai

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A busca de Angelo pelo sobrenome do homem que ele tem como pai, o padrasto, expõe um indicativo recente do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre organização familiar. Desde 2016, o entendimento é o de que as transformações sociais demandam do Judiciário um novo olhar sobre o Direito da Família e as relações de parentalidade. Em suma, isso significa dizer que paternidade socioafetiva, o caso do menino de Quixeramobim, é uma realidade e pode existir sem a obrigatoriedade de a paternidade biológica ser apagada dos documentos (até para resguardar os direitos dele à herança, pensão e outras eventuais questões).

A opção do garoto pela paternidade afetiva é uma tentativa de esperança, tal qual o amor que ele sente e expressa por seu Adilton é uma atitude. O amor, como diz o poeta, é uma oportunidade. Um jeito de permanecer e, enfim, atravessar algo não tão bom. Aqui, é ressignificar pela multiparentalidade.

“O padrasto cumpre na vida do Angelo uma função paterna, que é algo construído tijolo a tijolo. É uma construção diária de amor, cuidado, atenção… Família é muito mais do que sangue. Afeto é algo para além da consanguinidade. Se você está ausente, como você constrói? ‘Pai é quem cria’ pode soar uma expressão clichê, mas é muito real”, explica a coordenadora do Serviço Psicossocial da Defensoria Pública, psicóloga Andreya Arruda Amendola.

Ela pontua que a construção da personalidade humana dá-se por volta dos oito anos, exatamente a idade de Angelo, e que essa é uma fase muito importante do desenvolvimento individual , principalmente, por conta das referências que cada um tem na vida. O fato de o garoto ter atravessado momentos marcantes da infância ao lado do padrasto (e não do pai biológico) favoreceu à criação e manutenção de um vínculo de carinho que é sim percebido pela criança e só ganha força.

“Cada um de nós é único e ressignifica os sentimentos da própria maneira. Alguns compreendem sentidos e outros vivem sempre com uma lacuna. Por isso que o ser humano é tão surpreendente! Mas é preciso entender que referência familiar não é apenas pai e mãe. Avós, tios, primos etc também são. É perfeitamente possível uma mãe exercer a função paterna. Se existe uma lacuna, alguém pode preencher”, alerta a psicóloga.

TIPOS
A legislação brasileira admite três modalidades de parentesco: biológica, por afinidade (entre cônjuge/companheiro(a) e os parentes da outra parte) e civil, decorrente de outra origem, que não seja a consanguinidade ou afinidade. Supervisor das Defensorias da Família de Fortaleza, o defensor Sérgio Luís de Holanda diz que, apesar de a multiparentalidade ser uma questão nova para a população, casos de paternidade/maternidade afetiva já chegaram às estruturas da capital.

Ele pontua a relevância da temática diante da evolução dos conceitos familiares. Juridicamente, o Brasil reconhece hoje outros formatos além do cisheterossexual biológico. “O que interessa em casos como esse de Quixeramobim é o afeto. É o vínculo de afetividade. De vida mesmo. Importa é como essas pessoas dividem a vida, quais interesses elas têm em comum”, sublinha.

Ter o nome do pai ou da mãe afetiva(a) nos documentos não é um capricho. É um direito. E, até mesmo antes disso, é a chance de morar numa história. Na própria história. Em uma história completa, real, com todos os atores e a destreza para diferenciar o ‘ter filho’ de ‘ser pai’. O limiar aí é o amor.

“Imagine o conflito dessa criança no dia dos pais! Deve ser um sofrimento se referir ao padrasto como pai e não poder assinar o nome dele. Então, se fazer a adição do nome do pai afetivo vai apaziguar o entendimento desse garoto, é algo muito importante a ser feito”, acrescenta Luís Sérgio Holanda.

Para o processo ter bom desfecho na Justiça, é fundamental a família apresentar registros documentais que comprovem o vínculo entre pai/mãe afetiva(a) e a criança em questão. Testemunhas também são necessárias. Elas confirmam ao juiz como é a vida dessas pessoas e dão ao magistrado alguma dimensão de como essa família é reconhecida socialmente.

O defensor explica que a inserção do novo nome tem efeitos sucessórios. Ou seja: a criança passa a ter direito a uma eventual herança, pensão etc. Isso porque a parentalidade/maternidade afetiva é o reconhecimento de um vínculo jurídico entre pai/mãe e filho(a). “Não se pode brincar com isso. Paternidade afetiva é algo que mexe com a dignidade da pessoa. Incide na formação da personalidade. Não é uma troca de blusa. Já tive caso de uma senhora de 80 anos que queria ter o nome do pai no registro. Ela passou uma vida inteira com uma lacuna e me disse que queria morrer em paz”, recorda Luís Sérgio Holanda.

SOBRAL
No projeto “Laços de Família: Conhecer para Amar”, mantido pela Defensoria em Sobral, cidade da região Norte do Ceará, são oferecidas à comunidade ações de mediação familiar com vistas a minimizar os reflexos jurídicos e sociais. A iniciativa é conduzida por defensores públicos, mediadores e conta com atendimento multidisciplinar realizado também por psicólogos, assistentes sociais e pedagogos.

“Quando o interesse da pessoa é a inclusão da paternidade ou da maternidade socioafetiva, a gente encaminha o ofício diretamente para os cartórios já solicitando essa alteração no registro civil. E, então, é só apresentar a documentação e aguardar o trâmite exigido. Nós só entramos com uma ação judicial quando são crianças menores de 12 anos ou quando o interesse é excluir o nome do pai ou da mãe. Aí é uma ação de adoção unilateral. É um processo mais longo porque é preciso destituir o poder familiar do genitor biológico e aquele pai ou aquela mãe que já é afetivo vai ser em todos os termos. Muita gente não sabe dessa possibilidade jurídica, de inserir os nomes dos pais ou mães afetivos no documento civil, e a divulgação dessa informação é muito importante porque abre muitas possibilidades”, afirma o coordenador do projeto, defensor público David Gomes Pontes.

Psicóloga atuante no Serviço Psicossocial da Defensoria, Socorro Serpa enaltece a possibilidade de a função paterna ser exercida por alguém de fora do núcleo principal da família biológica, tenha ela a composição que tiver. Um tio, um primo e até mesmo um professor pode preencher esse espaço, a depender da conjuntura do caso.

“Todos nós precisamos de referências. Porque essas pessoas são também referências de afeto, amor, cuidado… A criança precisa dessa vinculação. É importante ter uma referência de alguém que passa segurança para ela. E isso está para além da questão sanguínea e mesmo da questão financeira. Cumprir a obrigação de pagar a pensão não garante afeto de ninguém nem pode ser colocado como moeda de troca. A questão paterna é para além disso”, afirma Serpa.

Ela reforça o quão importante é a convivência para o estabelecimento desse laço de afeto entre pai e filho, sejam eles biológicos ou afetivos. É preciso saber que a criança consegue distinguir quem é uma figura concreta cuja função é bem exercida e quem é apenas um ideal. “Isso vai sendo construído ao longo da vida. O tipo de amor como o do Angelo pelo padrasto e vice-versa é um sentimento gestado. E é assim porque relações são construídas, assim como podem ser desconstruídas. Se é algo que não é cultivado pelos dois, se uma parte nunca se lembra da outra, se a pessoa nunca está presente nem nos momentos de alegria nem nos momentos difíceis, vai haver desgaste, que é o que parece ter havido entre o Angelo e o pai biológico”, pontua.

Nesse sentido, ela considera relevante o garoto de Quixeramobim receber acompanhamento psicológico. “Até para ele ter um espaço para falar da falta desse pai biológico. Se ele expressou é porque de alguma forma essa falta o afetou. Mas que bom que ele encontrou alguém que vai ser um pai pra ele e já teve espaço para falar sobre isso. É um bom sinal. Mostra que mesmo sendo muito novo ele já sabe o que a falta faz e sabe o que, pra ele, é ser um bom pai. E esse bom pai está na figura do padrasto. O padrasto preencheu esse espaço. É importante ele [Angelo] ter essa segurança. De alguma maneira, ter o nome do padrasto também vai trazer uma segurança em relação a isso. A segurança de que a relação entre eles vai continuar. E é importante também esse pai estar aberto a isso, a realmente exercer o papel de pai”, conclui Socorro Serpa.

SAIBA MAIS
Em novembro de 2017, o CNJ publicou o Provimento Nº 63 que, dentre outras medidas, autorizou o registro em cartório da filiação socioafetiva de pessoas de qualquer idade. Com a norma, que tornou bastante frágil o processo de registro de filhos não biológicos, o CNJ tornou meramente administrativo o reconhecimento da paternidade socioafetiva, ou seja, não seria mais preciso buscar a Justiça para reconhecer a filiação socioafetiva; bastava ir a um cartório e registrar a criança.

Diante de sucessivas críticas à fragilidade da norma do CNJ, em agosto de 2019, houve a publicação do Provimento Nº 83. O documento alterou trechos da norma anterior e tornou mais rígido o processo do registro de filhos a partir do conceito de socioafetividade.

Desde então, o registro de filhos socioafetivos pode ser feito em cartório apenas caso a criança seja maior de 12 anos. Caso contrário, a questão deverá ser demandada na Justiça.

Além disso, a norma determinou que, para o registro em cartório, o candidato a pai ou a mãe socioafetivo deve comprovar que a paternidade ou maternidade socioafetiva é estável e está exteriorizada socialmente. O requerente também precisa demonstrar a afetividade por meio de documentos – como apontamento escolar como responsável ou representante do aluno; inscrição da criança em plano de saúde; registro oficial de que residem na mesma unidade domiciliar etc.