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Sobre ser tão amor

Sobre ser tão amor

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As palavras saem do coração, atravessam dedinhos miúdos e deitam numa folha do caderno da escola. Deixam o alpendre da casa humilde, de cimento cru, e caminham pela estrada de terra de um sertão imenso, debaixo de um sol forte e céu sem nuvens. São elas, essas palavras, testemunhas de um amor que está ali, visível, e busca o reconhecimento da força da lei. O desejo:

“Senhora juíza, quero pedir encarecidamente que a senhora troque meu nome. Meu nome é Angelo Ravel Nunes de Sousa e quero tirar o sobrenome Sousa. É o sobrenome do meu pai biológico. Eu gostaria muito de usar o sobrenome do meu verdadeiro pai, que é o meu padrasto. Ele sim é um pai de verdade pra mim. Ele esteve comigo nos momentos bons e ruins.”

Angelo tem oito anos. Carrega no nome a missão (e sabe disso) de mensageiro. O único da turma que lê e escreve. Entende tudo. E quer ser jornalista “porque sou tagarela”. Com a mãe, os dois irmãos e seu Adilton, ele mora no Rancho, uma comunidade de difícil acesso na zona rural de Quixeramobim. E é lá, nos cafundós da segunda maior cidade do Sertão Central, numa região limítrofe com o território de Madalena, a 250 quilômetros da capital, Fortaleza, que essa relação se edifica há cinco anos.

Um amor cultivado no coração do Ceará. “Ele sai todo dia quatro e meia da manhã pra trabalhar, chegar umas seis horas da tarde para conseguir 50 reais pra não deixar faltar nada pra mim e pros meus irmãos. Pai é aquele que ajuda, aquele que ama, que abraça, que dá carinho, que tá do lado, que conversa, que dá atenção. E é ele quem faz isso comigo. Ele sim é meu verdadeiro pai”, explica o garoto.

Teresa Cristina Nunes, a mãe, antes descrente da possibilidade de Angelo ganhar o sobrenome do padrasto, agora sonha junto, diante da atuação da Defensoria Pública no caso. Além do garoto, a mulher tem outros dois filhos: Any, de 16 anos, com o ex-companheiro, e Moraes, de apenas três anos, fruto do relacionamento com Adilton. O casal se conheceu pela Internet.

“O Angelo vinha batalhando e insistindo nisso [ter o sobrenome do padrasto] há muito tempo. Eu achava que não ia dar certo porque pensava que era coisa muito distante da gente… Aí eu deixava de lado e mudava de assunto. Escondi até a carta pra ver se ele esquecia dessa história. Eu pensava que isso era quase impossível, que só poderia mudar quando ele fosse maior de idade, depois dos 18 anos. Mas vocês estão aqui por causa da insistência dele. O defensor disse que ia dar certo, que tem outros casos assim. Então, pode ser que a gente consiga também”, acredita a dona de casa.

Assim como ela – mulher de 35 anos que carrega no rosto as marcas de uma vida inteira de trabalho na roça, opressões e exclusões – Angelo sabe que o acesso ao básico no contexto dele demanda além do querer. A única renda da família é o programa assistencial do Governo. Trezentos e noventa e seis reais por mês. Para cinco pessoas. Ou seja: R$ 2,66 ao dia para cada um, quando muito. Pelos critérios do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os indicadores configuram situação de extrema pobreza.

Ele e a família vivem, portanto, com o mínimo. Na casa, distante 50 quilômetros da sede de Quixeramobim, 12 dos quais percorridos em estrada carroçável, o acesso à Justiça para alterar o próprio nome só é possível de três formas: revestindo-se de poesia, não perdendo a passagem do “carro de horário” ainda na madrugada e acionando a Defensoria.

“É impossível não se emocionar com essa história, principalmente porque é uma família muito humilde e que poderia pedir qualquer outra coisa. Mas a felicidade tem outro sentido. Estamos vivendo tempos tão sombrios e quando encaramos uma situação de amor verdadeiro buscamos fazer o impossível para solucionar e fazer a diferença na vida daquela família”, destaca o defensor Jefferson Leite Dias, titular na comarca e responsável pelo caso.

Ele colheu depoimentos, reuniu a documentação necessária e já deu entrada no pedido de multiparentalidade, que é a adição do sobrenome do padrasto à documentação de Angelo. Testemunhou, por exemplo, a narrativa de Teresa sobre ter começado a trabalhar cedo e como o menino perdeu o contato com o pai biológico há quase cinco anos. Ouviu também que amor é algo possível de ser construído no dia a dia. Com respeito e atenção.

“O pai biológico dele sumiu. Depois do divórcio, nós ainda tivemos contatos nas visitas que o juiz decidiu, mas sempre era uma confusão. O menino ficava chorando e eu ficava com medo tanto de deixar ele com o pai biológico, por causa disso, como também de não entregar a criança e me prejudicar com a justiça. Até que um dia ele nunca mais voltou. Deixou de dar notícias e eu segui com a minha vida. Foi quando conheci o Adilton no Facebook e desde quando nos vimos não nos largamos mais”, revela a mãe.

José Adilton de Moraes compartilha da criação de Angelo desde os três anos. Reconstrói todos os dias a confiança do garoto no amor paterno. Fazê-lo sentir-se amado novamente é um trabalho minucioso. De colar peça por peça. “Fiquei muito feliz de ele querer colocar meu nome no documento. Porque eu sempre quis ser pai e ele já é meu filho. Só não está no papel. Mas o sentimento que tem aqui dentro do peito é de muito amor. Agora, se Deus quiser, na certidão de nascimento dele vai ter meu sobrenome também”, orgulha-se o agricultor.

A história de Angelo conquistou as redes sociais depois que a juíza de Quixeramobim, Kathleen Nicola Kilian, a quem a carta do garoto era endereçada, respondeu à mensagem do menino e encaminhou a família para o atendimento com a Defensoria (já que o Judiciário, por iniciativa própria, precisa ser formalmente provocado para dar seguimento ao pedido).

“Nós  somos agentes sociais, com responsabilidade nas comunidades em que atuamos. Além de garantir os direitos individuais, a Justiça promove direitos, projetos e campanhas para o melhor exercício da cidadania em Quixeramobim. No município, a comunicação entre o Fórum, a Defensoria, o Ministério Público e a OAB é próxima e fluida, com todos atuando em prol do melhor serviço. Essa carta reforçou em mim a vontade e a vocação pela Justiça, trazendo esperança de uma criança em busca dos seus direitos e que confia que na Justiça encontrará atos de amor ao próximo. Essa criança confia no acesso à Justiça e no nosso trabalho em favor da sociedade, e vamos trabalhar para que esse sentimento continue aceso em Quixeramobim”, destaca a magistrada.

Chegar à Defensoria Pública brotou em Angelo, Teresa e Adilton um desejo: o de que agora, de fato e de direito, sem ninguém ter motivo ou razão para dizer o contrário, a família pode se agigantar e ser tão maior quanto deseja num sertão já imenso de amor. E ele, o amor, mora logo ali, no sertão de um Quixeramobim que leva a alcunha de coração do Ceará, e pode ser tão forte quanto o sol pra cada um que ali vive.

Multiparentalidade: da origem biológica aos laços de afeto

Com o processo da Defensoria já dado entrada na Justiça, Angelo poderá ter o sobrenome tanto do pai biológico quanto do padrasto se o juiz acatar o pedido. No linguajar popular, o garoto vai ter uma mãe e dois pais na certidão de nascimento: um pela questão biológica e outro pelo caráter socioafetivo.

Apesar de o termo “multiparentalidade” parecer estranho, ele apenas conceitua uma realidade social vivida por milhares de famílias. Afinal, quem nunca ouviu a expressão ‘pai é quem cria’ ou ‘mãe é quem cria’? É preciso compreender, no entanto, a diferença que existe entre multiparentalidade e adoção.

“Na adoção, a filiação anterior é apagada dos registros civis do adotado. O indivíduo passa a ter em seus assentos registrais somente os dados dos adotantes como seus ascendentes. Na adoção, a intenção é a de constituição de novos vínculos familiares, uma vez que os vínculos anteriores são rompidos pelos mais diversos motivos. Na multiparentalidade, há a coexistência concomitante dos vínculos paternos e maternos, exercidos por mais de uma pessoa. E, nesses casos, ficam, inclusive, compartilhados a obrigação alimentar, a guarda, o direito de convivência e dos direitos sucessórios (herança e pensão)”, comenta o defensor Jefferson Dias.

Ele ressalta que, no caso de Angelo, o reconhecimento do garoto como filho por parte do padrasto existe desde que Adilton iniciou um relacionamento com Teresa, em 2016. “Eles residem juntos e mantêm um vínculo afetivo notório e totalmente espontâneo, tanto que a criança tem essa consciência de que o padrasto foi quem esteve presente nos momentos mais importantes da vida dele, representando-o como um verdadeiro pai”, acrescenta Dias.

A série “ser tão amor” tem outras duas reportagens. Leia também: A diferença entre ter filho e ser pai e A comunicação enquanto direito.

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