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Adoção é coisa séria: devolução de crianças deixa sequelas psicológicas e afetivas

Adoção é coisa séria: devolução de crianças deixa sequelas psicológicas e afetivas

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Quem pensa em um projeto de família sonha com todos felizes e vivendo momentos de alegria e harmonia. Não passam pela cabeça muitas vezes os desafios diários da maternidade e da paternidade, o corre do dia a dia, os momentos de desobediência, bagunça, cenas de birra e confrontos que fazem parte da rotina de pais e filhos.

Nesta quarta-feira (25/5), comemora-se o Dia Nacional da Adoção. Geralmente, crianças e adolescentes que estão nas unidades de acolhimento à espera de uma família não têm um passado feliz, já viveram situações de abandono, maus-tratos, miséria e até mesmo o falecimento de seus pais biológicos. Hoje, a Defensoria Pública do Estado do Ceará (DPCE) faz uma reflexão quando alguém desiste do ato de adotar durante o andamento do processo. Um segundo abandono se concretiza e traz fortes marcas para quem acaba tendo que voltar para o abrigo.

Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a adoção é uma medida irrevogável. Uma vez que se alcança uma decisão favorável em um processo de adoção, é atribuída àquela criança ou adolescente a condição de filho, lhe garantindo todos os direitos previstos na legislação e trazendo deveres para estes pais adotivos. Porém, infelizmente, o que deveria ser um ato de amor, ganha contornos difíceis. Embora não se tenha um levantamento a respeito da ocorrência das devoluções, equipes técnicas que trabalham nas unidades de acolhimento afirmam que o ato de devolver uma criança é mais comum do que se imagina.

Supervisora do Núcleo de Atendimento da Defensoria Pública da Infância e da Juventude (Nadij), Julliana Andrade  afirma que tem ocorrido alguns casos referentes à devolução de crianças em processo de adoção. “Não temos como falar em estatísticas de forma exata, geralmente, acontece durante o estágio de convivência, momento em que ainda é possível desistir, porém é uma atitude muito prejudicial e traumática para a criança que cria expectativas de ganhar uma família e acaba tendo que vivenciar mais um abandono”.

Ela explica que dentro das etapas do processo de adoção, várias fases favorecem a aproximação e a convivência entre os membros da nova família. “É gradativo: primeiro, a pessoa vê o adotando de longe; depois, conhece dentro de um grupo. Após algumas visitas, pode levar a criança para passear e dormir na casa da família. Toda essa aproximação é feita com o acompanhamento dos assistentes sociais e psicólogos e pode variar conforme as condições da criança. Este estágio pode ser dispensável se a criança tiver menos de um ano de idade ou se já estiver na companhia do adotante com vinculação afetiva constituída. O importante é destacar que em todos os  momentos os pais precisam de paciência, segurança e muito afeto”, pontua.

Após o aceite dos interessados e da aproximação gradativa, começa o chamado Estágio de Convivência. Essa etapa é o período no qual a criança ou adolescente se muda para a casa dos adotantes, que passam a ter o Termo de Guarda com vistas à adoção. Não há um tempo fixado para o Estádio de Convivência e é preciso considerar as peculiaridades de cada caso.

Para o educador social Antônio Carlos da Silva, que atua na Unidade de acolhimento O Pequeno Nazareno, as famílias devem receber apoio irrestrito das instituições neste momento. “Tivemos um caso de uma criança que passou por essa situação duas vezes. Foi devolvida para a unidade de acolhimento após estágio de convivência com duas famílias diferentes. E por mais que a gente converse com ela, ofereça o acompanhamento psicológico e a assistência social necessária nessas situações, deixando muito claro que aquele estágio de convivência não é a concretização da adoção, há uma carga enorme de frustrações criada na expectativa de pertencimento a essa família e essa frustração deixa sequelas emocionais para sempre”, destaca Antônio Carlos.

A defensora pública titular do Nadij, Jacqueline Torres, destaca como é importante o trabalho de acompanhamento às pessoas cadastradas no Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA) do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o qual abrange milhares de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade. “É importante ações de apoio a quem está cadastrado no sistema e apto a adotar uma criança ou um adolescente, porque é preciso conhecer todo esse processo, se preparar, passar por capacitações e realizar as reuniões com as equipes técnicas para que realmente se possa ter a consciência do que está por vir pela frente.”

O educador social Antônio Carlos complementa: “muita gente tem no coração esse gesto de bondade, esse desejo de adotar, mas muitas vezes não entende que é algo que não vai acontecer como em um conto de fadas. Vão acontecer conflitos, tensões e isso requer da pessoa muita responsabilidade, dedicação e tempo. Tudo isso com muito amor principalmente para que a pessoa esteja convicta das suas decisões, para que justamente esse tipo de situação não ocorra, pois quando você tem um filho natural, biológico, você não sabe como vai ser o temperamento, como vai ser a convivência e normalmente as pessoas não abandonam um filho quando têm uma dificuldade com ele. Não largam a mão de jeito nenhum e não é porque esse filho não é biológico que você tem esse direito.”

Esses momentos demandam paciência, segurança e muito afeto por parte dos adultos. O casal Nazareno Lima Almeida, 58 anos, e Patrícia Coelho, 45 anos, conhece bem essa rotina. Eles deram entrada no SNA em 2017 e logo no ano seguinte foi finalizado o cadastro no sistema. Participaram de todos os cursos e facilitaram as informações no perfil para adotarem um casal de irmãos.

“Me surpreendi porque depois do cadastro pensamos que ia ser rápido, mas ainda ficamos dois anos e dez meses esperando. E assim que nos chamaram para conhecer as crianças que naquela época estavam disponíveis eu descobri um câncer e precisei me dedicar à minha saúde, fazendo tratamento de radioterapia. Só em outubro de 2019 consegui retomar e fomos novamente chamados para conhecer as crianças.”

Eram os irmãos Francisco Eliton, de cinco anos, e Ana Alice, de quatro anos. “Nos conhecemos no começo de dezembro de 2020 e o nosso encontro foi tão bonito que imediatamente nos conectamos. Eles passaram o Natal de 2020 e o Ano Novo conosco. Há um ano, nossos filhos chegaram, com os registros de nascimento regularizados, com a rotina já estabelecida, estão na escola e fazemos tudo juntos, eu e o meu marido, para darmos o máximo de acompanhamento e assistência. Mas educar não é fácil. A vida, como um todo, não é um conto de fadas. Precisamos impor regras, limites. Tudo com paciência, amor, atenção, carinho e respeito. O maior conflito é eles brigarem por brinquedos. Só isso mesmo”, revela Patrícia.

Caso da Defensoria 
Crianças e adolescentes devolvidos podem receber reparações. No Brasil, decisões neste sentido – favoráveis à criança – já foram tomadas. Por terem suas expectativas frustradas e vivenciarem um novo abandono, elas tiveram direito à reparação por danos morais e os responsáveis pela devolução foram obrigados a arcar com as despesas médicas e da psicoterapia que venham a precisar.

Em setembro de 2020, uma mulher foi condenada pela Justiça Estadual por desistir de um processo de adoção e causar danos psicológicos à criança. Vinculada a uma menina de sete anos em 2010, ela desistiu do processo um mês depois alegando que a garota era desobediente. Devolveu-a a um abrigo público e agora terá de pagar R$ 15 mil de indenização por danos morais para a menina.

A juíza do caso, Alda Maria Holanda Leite, instituiu indenização por entender que a devolução da criança aconteceu no chamado “estágio de convivência”, quando, por lei, o pretendente deve avaliar e certificar-se do seu desejo e da disposição de aceitar aquele ser para toda vida. No entanto, como a criança apresentou danos psicológicos evidenciados em relatórios posteriores à devolução, a magistrada considerou pertinente o pagamento da reparação. Pela sentença, não houve esforço por parte da mãe para que a relação entre as duas continuasse e fosse plena, harmoniosa e permeada de afeto.