Após nove anos, mulher trans é inocentada da acusação de homicídio e recomeça a vida em São Paulo
Texto: Bruno de Castro
Ilustração: Valdir Marte
Foram nove anos de espera. Um tempo de aflição por ser acusada de assassinato quando, na verdade, tinha apenas lutado para não ser morta. Hoje, aos 33, Jéssica da Silva Lima pode, enfim, respirar aliviada. É inocente. “Isso me deixava angustiada e, agora, posso dormir de coração descansado. Mas eu esperava ser absolvida porque foi um incidente que acabou de uma forma que eu não queria”, afirma.
Negra e em situação de rua, ela se viu incriminada ao envolver-se em uma briga em 2015 em Maracanaú. No confronto com outro morador de rua, Jéssica, então com 28 anos, foi golpeada no rosto por um objeto cortante. Reagiu com uma faca e feriu o homem, que morreu. “As pessoas viram tudo e ninguém ajudou. Fizeram pouco caso. Por eu ser trans, senti que rolou um preconceito. Se eu não fosse trans, com certeza teriam me ajudado”, afirma.
A jovem chegou a ser presa. Ficou um ano na unidade prisional. “Ela faz uma série de denúncias: que foi colocada em unidade masculina, que ficou em cela para pessoas acusadas de crime de estupro, que foi estuprada, que não recebeu medicação adequada… E ficou presa, inclusive, sem ter antecedentes criminais. Em regra, ela deveria ter sido solta. A presunção de inocência deveria ter pesada”, avalia o defensor Breno Vagner Bezerra Vicente.
Ele atuou no caso e lista seis razões pelas quais o júri inocentou Jéssica ao aceitar a tese de legítima defesa: 1) vários depoimentos sobre ela ter sido perseguida pelo homem; 2) as contradições de uma testemunha importante; 3) a confirmação, por parte de um policial, da lesão no rosto; 4) a falha do Estado de não atestar essa lesão no exame de corpo de delito; 5) a versão de Jéssica ter sido a mesma desde o primeiro momento; e 6) a mudança de entendimento do Ministério Público, que a acusava de “homicídio duplamente qualificado”, e no julgamento convenceu-se da tese de legítima defesa.
Jéssica aguardava o julgamento em liberdade desde agosto de 2016. E participou da sessão de forma on-line na última segunda-feira (5). “O ideal é sempre estar presencialmente. Mas, nesse caso, como ela permanece em situação de rua, está em São Paulo, passou por diferentes equipamentos públicos e dificilmente conseguiria vir por meios próprios, viabilizamos o meio virtual para ela não ser julgada à revelia, como quase foi. Diante de todas as provas, ficou evidente que ela buscou por várias vezes se proteger da forma mais proporcional possível, mas a coisa cresceu tanto que ficou inviável se proteger de outra forma. Tecnicamente, por tudo o que ela passou e pelo tempo que ficou presa, cabe, se ela assim entender, em outro processo, pedir uma reparação por dano moral”, pontua Breno.
Por ora, Jéssica só quer um pouco de paz para, enfim, recomeçar a vida. Já recomeçou. Na capital paulista, está inscrita em um projeto de educação de jovens e adultos. Quer concluir os estudos. Ela tem apenas o segundo ano do ensino médio. Em paralelo a isso, está em busca de mudar oficialmente o nome (saindo do masculino para Jéssica) e o gênero (para feminino) para também nos documentos ser reconhecida – de fato e de direito – pelo Estado como a mulher que é.
Natural do Crato, na Região do Cariri, ela não pretende voltar ao Ceará. “Eu morava com minha avó. Depois que ela morreu, eu caí no mundo e não tive contato com mais ninguém da minha família. Nem quero. Por enquanto, estou em abrigo público. Passo o dia no abrigo e saio só pra resolver alguma coisa, como a retificação dos documentos. Agora, se Deus quiser, vou terminar os estudos e arranjar um emprego. Quero melhorar de vida”, sentencia.
SERVIÇO
DEFENSORIA PÚBLICA EM MARACANAÚ
ENDEREÇO: Shopping Feira Center (Avenida 1, número 17, Jereissati I)
TELEFONES: Contatos: (85) 3194.5067 ou 9.8400.6261 (WhatsApp) – 9h às 15h
E-MAIL: maracanau@defensoria.ce.def.br