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Casal lésbico vive tripla maternidade proporcionada por adoção tardia de irmãos: “vão ser seres humanos decentes”

Casal lésbico vive tripla maternidade proporcionada por adoção tardia de irmãos: “vão ser seres humanos decentes”

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Processo acompanhado pela Defensoria Pública resultou numa nova chance de vida para Victor, Sandra e Hadassa. O trio estava há três anos em um abrigo público de Fortaleza e, desde outubro de 2023, vive com Fernanda e Virgínia. A família mora no bairro Jangurussu e dá o testemunho do quão possível é o recomeço quando se tem oportunidade.

 

Texto: Bruno de Castro
Foto: ZeRosa Filho
Ilustração: Valdir Marte

“As crianças sabiam como chamar outras crianças para o mundo.”
Ayòbámi Adébáyò, na página 95 do livro “Fique comigo”

 

Parece até que os três irmãos sabiam, de alguma forma inexplicável, que a microempreendedora Fernanda Skarllath, de 31 anos, e a gerente comercial Virgínia Sandra Alves, de 46, sonhavam com uma maternidade repleta de gentes. O primogênito trouxe a do meio que trouxe a caçula. Vieram, como se diz no Ceará, “de ruma”. Uma ruma de gentes. Os três d’uma só vez. E, assim, duas meninas e um garoto uniram as próprias alegrias com os latidos que lá já estavam e com as felicidades de quem lhes recebia. Povoaram, então, dois corações.

“Aqui é o nosso lar. É vida nova. Achamos uma boa família. A nossa família”, ensina Victor, aos 11 anos. “Da mamãe Fernanda, o que eu mais gosto é do carinho; da mamãe Virgínia, é que ela cuida de nós”, revela Sandra, de 8 anos. “Eu gosto do meu au-au”, elabora Hadassa, aos 4 anos. Do sofá da sala, os três são a realização de um sonho antigo do casal de mães.

“Nossa vontade sempre foi a maternidade. Meu sonho era ter a casa cheia. Então, eu tinha convicção de que nós iríamos ter muitos filhos. A gente poderia pagar por uma fertilização? Poderia. Mas percebemos que ser mãe não é só parir. Não precisávamos da barriga para amar”, diz Fernanda. “A gente sempre dizia que queria adotar irmãos. Por mais que as pessoas jogassem água fria dizendo que ia demorar, a gente continuava. Porque era um objetivo”, acrescenta Virgínia.

Em 2021, juntas há sete anos, cinco dos quais casadas, elas deram entrada na documentação para serem inseridas no Cadastro Nacional de Adoção (CNA). Isso aconteceu no ano seguinte, após cumpridas as avaliações de psicólogos e assistentes sociais. A princípio, até cogitaram a adoção de recém-nascidos. Contudo, o processo de formação exigido por lei e o contato com outras famílias fez Fernanda e Virgínia repensarem as prioridades. E elas decidiram sair em busca de adoções tardias.

Ou seja: mudaram o foco para crianças de idade mais avançada. “As pessoas romantizam muito a maternidade. Querem recém-nascido porque acham que, quando essa criança crescer, vai ficar parecida com elas. Mas isso não existe. A gente sinalizou que queria recém-nascido porque também romantizava. Mas percebemos que a prática é diferente. A maternidade dá trabalho e é cansativa. Alterar o perfil que a gente queria adotar foi a melhor coisa que a gente fez”, avalia Fernanda.

Menos de um ano depois disso, uma ligação do Sistema Nacional de Adoção (SNA) tornou o sonho real. Victor, Sandra e Hadassa surgiram na vida delas. Outras quatro famílias haviam manifestado interesse em adotar o trio. Mas foi bater o olho em fotos dos três para a certeza nascer no peito. Era 27 de julho de 2023 – “o dia que a bolsa estourou”, como brinca Fernanda -, e os irmãos deixariam dali a dois meses o abrigo público no qual estavam há três anos para morar com as novas mães. Eram os mais antigos do equipamento, os mais queridos também, e nasceriam do melhor dos afetos: o amor.

 

Sandra, Hadassa e Victor estavam há três anos em um abrigo de Fortaleza

 

A família também tem cachorros adotados

 

No SNA, 11% das 4.767 crianças e adolescentes disponíveis para adoção compõem grupos de três irmãos. “Eu estava acessando a página do cadastro na exata hora em que eles foram disponibilizados para adoção. E não houve dúvida. Imediatamente manifestei o interesse. Então, eles ficaram por minutos no sistema. Mas a gente brinca dizendo que eles passaram três anos esperando a gente, porque foram três anos até a destituição da família biológica acontecer. Aí, nós, de repente, saímos de uma rotina de duas para cinco. Mas não nos arrependemos. Nunca, nunca, nunca passou pela nossa cabeça devolver nossos filhos. A gente sabia que ia conseguir”, atesta Fernanda.

O primeiro encontro presencial aconteceu em 8 de agosto de 2023. No dia 20 de outubro seguinte, a Justiça concedeu a guarda provisória. E, em março deste ano, a guarda definitiva. “A gente não tem nem um ano ainda de convivência. Mas estamos certas de que tomamos a decisão correta de adotar os três. Porque quando você pega o processo e lê o histórico deles, você pensa que não são as mesmas crianças. Elas já mudaram muito! Evoluíram muito! Hoje, a gente não consegue imaginar a nossa maternidade sem ser com os três. Não dava pra ser só um”, pontua Virgínia.

Aos poucos, o projeto de família vai sendo construído. Metas? Nenhuma individual. Todas coletivas. Para cinco. Cinco, não. Oito. Os três cachorrinhos não ficam de fora. Afinal, também chegaram ao lar pela via da adoção e, muitas vezes, são a alegria da casa. Escola, reforço, escolinha de futebol, horário da merenda, dever de casa, a rotina se transforma dia a dia. E a casa num condomínio fechado numa periferia de Fortaleza abriga todas as vontades de uma família que se fez possível.

“Dos três, o Victor foi o que apresentou alguma resistência porque tinha mais memória da família biológica. As tias do abrigo disseram que ele já até tinha tido falas homofóbicas. Mas quando elas perguntaram se as meninas e ele queriam ficar com a gente, os três disseram que sim. Hoje, ele é o mais apegado à gente. Ele é uma pedra preciosa lapidada. É o que mais se permite amar. Ele e elas sentem que são pertencentes a uma família. Sabem que são amados. O que a gente precisa é acender a esperança no coração das pessoas. Muita gente vive frustrada e perde a esperança por achar que não é possível viver um sonho. Nós somos a prova de que é possível. Porque família não é sobre sangue. É sobre sentir o mesmo amor”, sentencia Fernanda.

A microempreendedora e a gerente comercial, tão habituadas ao cumprimento de metas no âmbito profissional, celebram a possibilidade de enxergarem no ordinário uma beleza que só a maternidade é capaz de proporcionar. Por isso, a meta principal, elas dizem, é ver os filhos bem. Os três. “Não existe mais a minha meta. Existe a nossa meta. Eu imagino eles como seres humanos decentes. Pessoas do bem. Não importa a profissão que vão seguir, mas que sejam pessoas que se importem com o outro. Que pensam no outro. Que conduzam a vida de forma íntegra”, profetiza Fernanda.