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“Eu achei que esse dia nunca ia chegar. Chegou”

“Eu achei que esse dia nunca ia chegar. Chegou”

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Diante de uma plateia repleta de semelhantes, Neon Cunha falou sobre os desafios de ser a primeira mulher trans do Brasil a mudar nome e gênero na certidão de nascimento sem a necessidade de laudo médico. A publicitária participou nessa quinta-feira (30/6) do Transforma, o mutirão da Defensoria Pública Geral do Ceará (DPCE) que entregou, num só dia, 172 documentos retificados a pessoas que não se identificavam com características biológicas e atribuídas na infância.

Após uma batalha judicial dolorosa, Neon conseguiu em 2016 modificar nome e gênero na certidão. Assim, abriu caminho para dois anos depois o Brasil derrubar a obrigatoriedade de toda pessoa trans só alterar documentos com autorização médica e por meio de uma sentença. “Eu me comprometi que só iria celebrar no coletivo. Achei que esse dia nunca ia chegar. Chegou. Então, quero dizer uma coisa pra essa nova geração de aves de rara beleza: voem muito alto! Vivam tudo o que eu não vivi. Divirtam-se. Se quiserem trabalho, trabalhem porque querem e não porque precisam. Não aceitem migalha afetiva. Voem muito alto. Eu sou só uma pantera.”

Neon enalteceu a iniciativa da Defensoria de promover uma força-tarefa destinada a atender exclusivamente uma população cuja garantia de direitos é quase sempre precária. Estudos indicam que pessoas trans e travestis no Brasil vivem, em média, apenas 35 anos. Esse contexto dá ao país o posto de líder do ranking mundial do assassinato desses indivíduos, com o Ceará ocupando atualmente o quarto lugar nacional com mais casos.

Foram 11 só no ano passado. E 73 desde 2017, conforme levantamento da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). “Com 26 anos, eu não tinha mais uma amiga viva. Ou era HIV ou era bala ou tava com a garganta aberta. Quem dera se todo mundo entendesse que nenhum corpo deve ser violado. O corpo é instrumento do gênero. Pessoas trans suspendem o não e transformam em vida. Nós somos divindades”, disse Neon.

 

 

Hoje com 52 anos, a mineira lembrou de uma juventude atravessada pela Ditadura Militar, período histórico no qual identidades dissidentes foram perseguidas e mortas. “A gente cresceu ouvindo os homens cantarem ‘joga pedra na Geni’ e dizendo que a mulher mais bonita do Brasil, a Roberta Close, era homem. Diziam que HIV era coisa de travesti. Eu assisti, aos 16 anos de idade, o camburão parar uma travesti do outro lado da rua. O policial não pensa duas vezes. Ele desce, atira na testa dela, olha pra gente e diz: “corre, enquanto vocês estão vivas”. Eu corro até hoje, porque eu tô vendo muita gente viva. E eu quero mais. Eu quero muito mais.”

Para a publicitária, a garantia do direito de mudar nome e gênero nos documentos é fundamental. A memória de uma vida marcada pela dor, no entanto, Neon acredita ser impossível de apagar, especialmente se essa identidade de gênero for marcada também pela questão racial. “Antes de ser trans, eu sou preta. O ser preto chega antes. A gente apanha primeiro por ser preta. Você trabalha, estuda e não é gente. Por isso, eu quero saber se você, pessoa cis, vai transicionar para um caráter melhor para acolher pessoas trans. É por isso que eu não curto aliado. Eu gosto de gente envolvida. Envolvido é quem apanha comigo. É quem se entrega e vai tomar coió com a gente.”

A grande procura pelo Transforma foi destacada por Neon Cunha. Em apenas 11 dias, a Defensoria recebeu 368 inscrições de pessoas interessadas em mudar nome e gênero na certidão de nascimento. Na opinião da publicitária, a entrega dos documentos retificados “são vidas que estão sendo garantidas”. Nos 25 anos de existência da DPCE, nunca a instituição lidou com uma demanda tão elevada sobre a questão.

“Todas as mortes que eu assisti não tiveram nomes em lápides. Eu lembro os rostos, mas eu não sei se eu posso depositar flores. Eu sou filha da senhora de transformar morte em vida. Quando eu decidi que eles não iriam violar esse corpo e que eles não sabiam nada sobre nós, além da vaidade deles, eu decidi: eu quero nome e gênero. Ou eles vão assumir a responsabilidade de que nos odeiam e nos matam. Era um grito”, disse.

 

 

Durante a batalha judicial para mudar de nome e gênero sem que isso seja considerado uma doença, como era a transexualidade em 2016, Neon foi a primeira pessoa trans do mundo a falar presencialmente em audiência na Organização dos Estados Americanos (OEA). Todo o processo e as taxas para retificar a certidão de ela custeou do próprio bolso, diferente do que aconteceu com todas as pessoas que participaram do Transforma ou que são assistidas pela Defensoria, cuja atuação é totalmente gratuita.

“Todo mundo se recusava a me defender. Não foi nada de graça. Não foi nada por acaso. Eu paguei minha retificação inteira. E não foi barata. Eu não queria nenhum laudo. Não queria nem foto. Porque laudos são pura vaidade e a gente sabe que eles não dominam o que a gente domina. Disseram que eu não conseguiria. Na OEA, eu perguntei: “vocês levantam corpos?” Porque eu quero saber sobre todas as outras que foram executadas nessa omissão do estado. Cada pessoa que não teve o seu nome retificado, cada pessoa que não teve o seu direito de existência é omissão do estado. E, provavelmente, o estado nunca vai ser punido por isso. Mas vamos pensar: qual garantia de integridade nós temos? Qual garantia nós temos do dia seguinte?”, instigou Neon.

Clique aqui para assistir à palestra de Neon Cunha na íntegra.