#OrgulhoLGBTQ+: Defensoria atua na retificação de nome e gênero em rede de assistência e proteção
Questionamentos internos acompanharam toda a infância e adolescência de Arthur Santos Dantas, 25 anos. As dúvidas nasciam a partir da falta de identificação com o gênero feminino. Teve uma vida toda construída com base no que socialmente se entende como “coisa de menina”: roupas, brinquedos e ensinamentos. “Aos 18 anos, soube do termo homem transexual, através do filme Meninos Não Choram. Quanto mais eu pesquisava, mais me identificava. Iniciei, assim, uma transição de forma retraída, usava escondido as roupas do meu pai na faculdade. Passei a me descobrir”, relembra.
Em março de 2018, o jovem teve uma boa surpresa ao saber que o Supremo Tribunal Federal (STF) tinha autorizado a troca de nome e gênero em documentos de transgêneros a partir da autodeclaração. Pelo entendimento da Corte Suprema, desde então, não é mais necessário apresentar tratamento hormonal, laudos médicos ou comprovante de cirurgias para pedir a adequação do nome e gênero. A orientação era realizar todo o procedimento nos cartórios, de forma administrativa, e não mais via judicial. Mas Arthur logo desanimou pelos custos. “No início, não corri atrás porque estavam cobrando valores absurdos, de até 700 reais por retificação. Eu não aceitava pagar”, contesta.
Meses depois, em junho, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou regras – por meio do Provimento nº. 73 – para que os cartórios efetivassem a mudança de nome e gênero nas certidões de nascimento e casamento (preparamos um informativo com as regras, confira aqui). Mesmo com a uniformização de procedimentos, o caminho seguiu com obstáculos. “Tinha documentos que eu não sabia como obter a gratuidade, nos cartórios as informações eram desencontradas”, relata. A experiência de Arthur foi semelhante para outras pessoas transgêneras e travestis, por isso a saída foi buscar o auxílio de políticas públicas e instituições para que o direito fosse, de fato, assegurado, como a Defensoria Pública.
No caso de Arthur, a porta de entrada para encaminhamentos foi o Centro de Referência Janaína Dutra de Fortaleza, serviço de proteção e defesa da população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e queers (LGBTQ+) da Prefeitura de Fortaleza. Localizado na região central da Capital, o equipamento passou a receber essas pessoas que esbarraram na burocracia. Segundo o coordenador Tel Cândido, de 2018 até os primeiros meses de 2019, foram atendidos 138 usuários com demanda de corrigir nome e gênero nos documentos. “A retificação do registro civil sempre foi uma das demandas recorrentes, porque nosso maior público é de travestis e transexuais. É o estrato da população LGBT que é mais vitimizado e vulnerabilizado, que sofre mais violência e é mais excluído do acesso de políticas públicas fundamentais. Tudo isso resulta em uma intensa violação de direitos”, explica.
Ali também foi o caminho encontrado pela cabeleireira Sarah Rodrigues da Silva, de 43 anos, que buscou novo registro e considera que “demorou demais pra ir atrás do próprio nome”. Descobriu-se mulher aos 10 anos e, mesmo com a tranquila aceitação por parte da família, passou por um cotidiano de dificuldades. “Na rua sempre é mais difícil, como até hoje é. Quem é travesti e transexual sabe, o preconceito existe: xingamento, apontamento, piadas. Nunca fui agredida, mas ainda sim se é obrigado a ouvir absurdos. Na escola, tenho até a 5ª série. Não tinha oportunidade de estudar, foi bem difícil”, afirma. Tem paixão pelo voleibol e faz parte do time de vôlei no Cuca Jangurussu, o Super Girls Vôlei. Foi entre um treino e outro que Sarah se encorajou a ir atrás de atualizar os documentos para a identidade de gênero feminina. “Falaram do Centro Janaína Dutra e cheguei aqui. Recebi todas as informações e eles me indicaram também a Defensoria Pública, para me ajudar, sem precisar pagar os valores que meu cartório estava cobrando”, afirma.
Segundo o coordenador do Centro de Referência Janaína Dutra, pelo provimento do CNJ, os cartórios deveriam realizar as mudanças a partir da declaração do usuário de que não pode pagar os custos – a chamada hipossuficiência. “Antes da decisão do STF, já fazíamos o fluxo para a Defensoria Pública, porque precisava ajuizar a ação. Com o provimento do CNJ, mantemos esse fluxo, mas entendemos que ele deve ser provisório, porque precisamos garantir o direito à autodeclaração de hipossuficiência, para que a barreira econômica não seja uma barreira de acesso à dignidade da pessoa humana, à personalidade e individualidade”, afirma.
Caminhos para alteração dos registros – Tanto Arthur como Sarah vieram, em diferentes momentos, até o Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas (NDHAC) da Defensoria Pública do Estado do Ceará, um dos atores de uma rede de assistência e proteção ao público LGBT no Estado, onde cabe receber as demandas, pautar no sistema de justiça e prover as orientações necessárias para o acesso à justiça e aos direitos.
Em Fortaleza, funciona assim: o(a) assistido(a) chega à sede da Defensoria, onde funciona o NDHAC, e declara que quer retificar nome e gênero, a partir da identidade de gênero que se reconhece. Cabe ao defensor(a) público(a) verificar se há ali um caso de hipossuficiência. A partir daí, a Defensoria poderá representá-la. O Núcleo expede ofícios aos cartórios de protesto requisitando as certidões gratuitamente, no sentido de instruir o procedimento. Quando essas respostas chegam, a pessoa interessada é chamada novamente à Defensoria. “Nós avisamos para que a pessoa interessada possa ser encaminhada, mediante ofício, ao cartório onde foi registrada, ocasião em que a Defensoria Pública vai representá-la administrativamente. Como é a Defensoria atuando, não há custos a pagar. Lá, ela dá entrada no procedimento que vai retificar o prenome e gênero”, explica a defensora pública Sandra Moura Sá, supervisora do NDHAC.
Em 2018, foram feitos 77 acompanhamentos de procedimentos administrativos de retificação de nome e gênero no NDHAC. Até junho de 2019, já são 62. Para a defensora, a partir do provimento do CNJ, as mudanças deveriam ser feitas diretamente nos cartórios, para que o usuário tivesse uma resposta mais rápida para a sua solicitação. “O STF reconheceu a identidade de gênero como direito humano, cujo reconhecimento se dá por autodeclaração. A hipossuficiência também deveria ser reconhecida por autodeclaração perante os cartórios, para que a pessoa não precise procurar outros órgãos. Mas isso está sendo sanado pela atuação da Defensoria Pública”, afirma.
Para quem foi registrado no interior do Estado e não pode se deslocar até o cartório de origem, pode obter a mudança em qualquer cartório de registro. Graças ao atendimento da Defensoria, a pessoa interessada, se foi declarada hipossuficiente, não pagará as custas cartoriais, no entanto, quem foi registrado no interior poderá ter que pagar a taxa dos Correios para o envio dos dados à Capital.
Burocracia ainda é obstáculo – “Não tem a Janaína Dutra, que dá nome ao Centro de Referência? Ela é minha tia avó”, revela orgulhoso Marcelo Heitor Pires, 21 anos. Assim como Janaína, o jovem autônomo também tem a busca por igualdade como bandeira de luta. Ele viveu o processo de retificação de nome e gênero. O processo dele durou “alguns meses”, por conta da burocracia de alguns lugares que ele teve que buscar para obter a lista de documentos atualizada exigidas para a retificação. “Há desconhecimento de alguns cartórios. Até mesmo no médico endocrinologista, quando ia buscar orientação para tomar os hormônios. Alguns se recusavam alegando motivos éticos, desconhecendo a minha identidade de gênero”, afirma.
Para Marcelo, o preconceito se manifesta, muitas vezes, durante o atendimento nos mais diversos órgãos e instituições. “Por ser transexual, você sabe o valor do respeito em um atendimento. E felizmente tive na Defensoria e no Centro Janaína Dutra. Quando peguei a certidão atualizada e não precisava mais me justificar para as pessoa sobre meu nome, senti como uma carta de alforria”, alegra-se.
Constrangimentos por conta do nome antigo também acompanharam Arthur. Mas depois de obter o documento retificado, passou a orientar outros amigos transexuais sobre o direito à gratuidade. “Fico mordido de raiva quando descubro que alguns pagam pela retificação. É um direito nosso! Digo pros meninos irem atrás, procurem a Defensoria, que terá todo o aparato para ter a certidão de forma gratuita”, defende o jovem. Casado, ele segue seu processo pessoal e busca agora realizar uma cirurgia para retirada dos seios.
Sarah também “correu para todos os lados” até conseguir reunir toda a documentação. Antes de vir à Defensoria, chegou a ser cobrada pelo cartório, mesmo alegando não ter condições de pagar. A poucos dias de receber a nova certidão de nascimento, ela diz sonhar com esse momento. “Quando eu tiver o registro vou sentir alívio, vou me sentir mulher. Vai ser um renascimento. Todo mundo que pedir meu documento vai ver que sou mulher mesmo”, projeta.
Frases de orgulho
“Hoje eu sinto orgulho de ser uma mulher trans. Já pensei em desistir, porque é complicado. E acho que devemos sempre lutar todas e todos por esse direito”,
Sarah, 43, mulher trans
“É uma metamorfose se olhar no espelho e ver a imagem que você tanto sonhou ali refletida. É muito bom chegar num determinado local e mostrar meu RG com meu nome é Arthur. Qualquer problema que enfrentei passa a ter pouca importância, porque tem coisas que valoriza mais. Eu poder tomar conta da minha casa e da minha família me fazem ter orgulho da minha trajetória”,
Arthur, 25, homem trans
“Para mim, a diversidade soa tão natural que sinto orgulho. Mas acho que era pra viver todo dia esse orgulho. Tem muita gente que não consegue ter acesso a direitos, que são marginalizadas, mortas e não são aceitas. O orgulho se traduz em resistência todo dia”,
Marcelo, 21, homem trans
SERVIÇO
Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas (NDHAC)
Rua Nelson Studart, S/N – Eng. Luciano Cavalcante, Fortaleza-CE
Email: ndhac@defensoria.ce.def.br / Tel.: (85) 3194.5038
Link para os endereços do interior: https://www.defensoria.ce.def.br/locais-de-atendimento/interior/
Dúvidas: Alô Defensoria – 129
Centro de Referência LGBT Janaína Dutra
Rua Pedro I, 461 – Centro, Fortaleza-CE
Tel.: (85) 3452-2047