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Paulo Rocha: “nossa visão tem que ser coletiva, não individual”

Paulo Rocha: “nossa visão tem que ser coletiva, não individual”

Publicado em
Texto: Bruno de Castro
Fotos: ZeRosa Filho
Colagem/Identidade Visual: Valdir Marte

 

Quatro mil quilômetros separavam Paulo Sérgio Rocha Júnior de Carazinho, no Rio Grande do Sul, onde morava, do sonho de ser defensor público. Ele, um homem negro nascido em Nova Era (MG), estado da Revolta dos Escravos Constitucionalistas, uma luta pela igualdade entre as raças, cruzaria o Brasil de ponta a ponta um ano atrás para desembarcar em Fortaleza e tomar posse no cargo pelo qual tanto batalhara. Ao final, foram 11 concursos.

Como quase todos os cotistas integrantes da Frente Negra da Defensoria, Paulo peregrinou país adentro fazendo provas. Roraima, Amazonas, Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul, Sergipe, Tocantins, Ceará, Mato Grosso, Rondônia, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Tentou ser defensor em todas as regiões brasileiras. Foi acolhido por aqui, terra pioneira na libertação dos escravizados e onde a presença negra em órgãos relevantes e cargos de poder ainda precisa ser estimulada, pois é forte o mito de que nossa ancestralidade é nórdica e não africana (no caso do Ceará, especificamente de Congo e Angola), o que contribui para a negação da importância do povo negro na formação da sociedade local.

“A maioria desses concursos tinha ações afirmativas. Eu optei por elas porque sou um homem negro e vejo minha inscrição como natural. Entendo que represento bem a efetividade dessa política pública. Mas é preciso dizer que nossa visão tem que ser coletiva, não individual. É um interesse público que se relaciona com a ocupação de um espaço e não somente com uma carreira profissional”, avalia Paulo.

Entre pessoas negras, conscientes da própria negritude e organizadas em ambientes permissivos a isso, é comum a predisposição à coletividade. Elas compreendem que em sociedades nas quais o bonito, o bom, o inteligente e o desejável é sempre branco, ou elas, enquanto tidas como o contrário disso tudo, unem-se, no sentido mais literal da filosofia ubuntu, “eu sou porque nós somos”, ou são dizimadas. É preciso aquilombar-se.

 

 

Hoje em Crateús, no sertão dos Inhamuns, Paulo já foi defensor por quatro meses em Icó, no sul do Ceará, onde lembra ter visto o autoritarismo policial. Por atuar exclusivamente na área criminal, o mineiro lida diariamente com pessoas negras como vítimas preferenciais de abordagens – o chamado “perfilamento racial”, considerado prática criminosa pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e contra a qual a Defensoria exerce papel estratégico de combate.

Foi exatamente esta característica, a função social da DPCE na luta pela garantia de direitos das pessoas em situação de vulnerabilidade, que fez Paulo vislumbrar o cargo de defensor. “Eu não tinha um conhecimento tão grande do que faziam as carreiras jurídicas. Tinha uma visão restrita aos concursos de massa e carreiras policiais ou fiscais. Trabalhei no Judiciário e percebi que não era pra mim. O MP (Ministério Público) tinha uma atuação com a qual eu não me sentia muito à vontade. Então, a escolha pela Defensoria foi uma construção. E o concurso do Ceará era o que mais me empolgava. Eu tinha criado uma expectativa muito grande porque é uma instituição com muita gente reconhecida, com muitas referências na educação pública, o concurso tinha muitas vagas (60) e foram mais de 900 pessoas pra segunda fase. Foi um período muito tenso. Quando consegui, eu não pensei duas vezes: tinha que ir”, recorda.

Para quem veio ao Ceará sem conhecer o estado, o defensor tem vivido dias intensos em Crateús que o colocam diante de realidades muitas vezes cruéis. Paulo relata uma rotina de muitos casos de violência doméstica e uso abusivo de álcool e drogas, além de questões de saúde e de sofrimento psicológico, como esquizofrenia e transtorno bipolar. Nem todas geram processos judiciais, mas isso não significa que a DPCE não possa atuar. Cabe ao defensor buscar redes locais de apoio às necessidades da pessoa atendida.

Isso tem feito Paulo circular bastante no município. “Eu julgo que esses oito meses foram até tranquilos em termos de adaptação. Acho que muito disso vem do fato de eu ter o costume de me imaginar no lugar antes mesmo de chegar nele. Então, antes de ser defensor, eu já me imaginava defensor, participando de audiências e fazendo articulações com outros órgãos. No caso de pessoas em sofrimento mental, o maior desafio é a sociedade reconhecer que nem sempre a prisão é a resposta que vai tratar essa pessoa ou resolver o problema. Ela precisa de uma política pública. Mas, às vezes, a depender do caso, não se tem rede de apoio”, constata.

 

 

Esta reportagem integra o especial Frente Negra da Defensoria, que narra as histórias de vida dos primeiros cotistas negros da DPCE e revela bastidores do ano inicial de atuação deles. Para ler as demais matérias, clique aqui.