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Por tão pouco: princípio da insignificância penal pode ser aplicado em casos sem consequências sociais

Por tão pouco: princípio da insignificância penal pode ser aplicado em casos sem consequências sociais

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Desempregado, com fome, sem perspectiva e sem comida. Também sem casa, às vezes. A essa altura da vida, também sem amigos, sem ter a quem pedir socorro, sem crédito na praça e, se conta tivesse, certamente, estaria negativada. Uma pandemia em curso e o filho clamando pão. O desespero de não enxergar saída e acabar subtraindo itens de primeira necessidade e baixo valor do mercadinho da esquina. Um pacote de pão, um quilo de arroz. Era pra saciar a fome, mas acabou preso.

É só mais outro caso de alguém detido por tão pouco. Algo que escancara o quão graves são as questões conjunturais brasileiras, evidenciadas com a proximidade do Dia da Justiça Social, celebrado no próximo domingo (20/2). “Imagine você ser julgado por um suposto furto de quatro reais!? Esse caso aconteceu recentemente. O acusado era praticamente um pedinte e ainda foi inocentado por falta de provas. É tão desproporcional e bizarro você movimentar toda a máquina do sistema de justiça, todos os atores do sistema penal, pra uma coisa tão irrelevante!”, avalia a supervisora do Núcleo de Assistência ao Preso Provisório e às Vítimas de Violência (Nuapp) da Defensoria Pública Geral do Estado (DPCE), Aline Solano.

Do ponto de vista objetivo, processos de casos com essas características não “se pagam”. O delito que levou a pessoa à prisão e gerou um processo é tão irrisório na perspectiva monetária que sequer cobre as despesas da própria tramitação. Ou seja: representa prejuízo aos cofres públicos. Além disso, torna-se mais uma ação a fazer volume no Judiciário e deixa a máquina morosa, colaborando para a demora de julgamentos de casos que, de fato, têm relevância jurídica e social.

Há ainda que considerar o tempo investido por servidores administrativos, policiais, escrivães, delegados, promotores de justiça, juízes, desembargadores e defensores públicos que atuam nesses casos e poderiam dedicar mais atenção e esforço a outros processos. Em suma: todos esses agentes teriam condições de dedicarem-se a ações que demandam aplicação do Direito Penal.

“O Direito Penal não tem que se preocupar com coisas que não tenham repercussão coletiva. Ele serve para proteger a vida, a integridade corporal, o patrimônio, a fé pública, a dignidade sexual etc. Como se faz essa proteção? Dizendo que há punição. Assim, tenta-se prevenir que o episódio ocorra novamente. Mas existem patrimônios tão insignificantes que não chegam a caracterizar crime, porque o ato não traz consequências pra sociedade. O princípio da insignificância vem fundamentar a descaracterização de crime das ações insignificantes, que não merecem ser trabalhadas de forma punitiva porque a punição é desproporcional à lesão causada por ela. É muito mais uma questão social do que jurídica”, detalha a defensora pública Patrícia Sá Leitão, atuante no Segundo Grau.

Ela explica que em “lesões mínimas” é possível aplicar o princípio da insignificância como estratégia de defesa já no Primeiro Grau, na tentativa de absolver o réu antes de o caso ir para instâncias superiores e libertá-lo com brevidade. “Ao aplicar esse princípio, o caráter de crime é retirado. Porque crime é a lesão que tem relevância à sociedade. Casos assim são recorrentes. Há um volume imenso de processos criminais com essas características, porque nem sempre o filtro da insignificância penal é feito pela autoridade policial. Se você pegar as pessoas presas por furto, a maioria é furto insignificante. Porque o furto é o crime do descuidista. Mas as pessoas ainda têm a falsa sensação de quanto mais gente presa, mais protegida está a sociedade. E isso não é verdade. Você previne a criminalidade de outra forma”, acrescenta Patrícia Sá Leitão.

Supervisor das Defensorias Criminais em Fortaleza, o defensor público Aldemar Monteiro pondera que o Direito Penal só deve agir quando não houver outro mecanismo de solução de conflitos. Se há formas de resolver a demanda sem que seja pela lógica do punitivismo e do encarceramento, assim deve acontecer. Ou deveria, pelo menos. Isso é o que se defende desde a década de 1960, quando surgiram as primeiras discussões a respeito do princípio da insignificância, uma herança alemã para o arcabouço jurídico brasileiro.

“Já participei de audiência de uma pessoa presa pelo furto de um energético, três chicletes e sete reais. Imagine você inserir uma pessoa dessa no sistema penal, com todas as mazelas e problemas que o sistema tem? Há muitos casos de dependentes químicos, principalmente de usuários de crack, que subtraem valores irrisórios para sustento do vício. E há também muitos casos de pessoas em situação de rua. Nós estamos diante de uma questão de vulnerabilidade. É um problema social, não de prender”, analisa Aldemar Monteiro.

Além das consequências ao Judiciário, a existência desse tipo de processo deixa sequelas também nos acusados dos crimes, que recebem punições desproporcionais ao delito cometido e, muitas vezes, têm as vidas totalmente desestruturadas. Furtaram comida para a própria sobrevivência, e chegaram a uma situação tão extrema por falha muitas vezes do poder público, e sentem o peso da mão desse mesmo Estado, que os tira do convívio social e não promove uma reinserção adequada (ou mesmo nenhuma reinserção).

“Geralmente, os presos por insignificância penal são pessoas em situação de vulnerabilidade. E vulnerabilidade em tudo. Se ela já está nessa situação e tem um processo contra si, vai ser fácil encontrar emprego? O convívio com amigos e familiares vai acontecer? Não vai. Ela vai conviver com a pecha do crime. É uma tragédia a vida da pessoa que sofre um processo. Mesmo solta, ela é apontada na rua. Os olhares continuam. A fama fica. A gente não tem como mensurar isso. E o tempo que a pessoa fica na prisão será que não é necessário pra ela ser cooptada por uma facção? Será que não vai colocar no ser dela a questão da injustiça? Furtar quatro reais é quase um furto falimentar. É quase criminalizar a pobreza”, acrescenta a defensora pública Aline Solano.

Uma saída seria o fomento à cultura da mediação, da solução consensual dos conflitos. Uma cultura ainda não muito forte no Brasil, que segue acreditando no encarceramento como política pública e tendo a população negra, pobre e periférica o alvo preferencial deste tipo de prisão. Não à toa, mais de 60% dos presos do país são pretos e pardos. E muitos são detidos em contextos questionáveis.

“Nem sempre se tem a percepção adequada do que a insignificância penal representa. A insignificância diz respeito à lesão aplicada e não ao histórico da pessoa. Não é uma questão subjetiva; é uma questão objetiva. Se o cara furtou uma chinela no supermercado mas responde a outros processos, não importa. Pode-se aplicar o princípio da insignificância da mesma forma. É preciso pensar que o tanto que o Estado gasta pra punir a pessoa ou mesmo só pra processá-la é enorme. Porque toda a máquina judiciária atua. Toda a máquina paga por algo irrisório. E isso desvia recursos que poderiam ser aplicados em casos mais graves”, finaliza a defensora Patrícia Sá Leitão.

A Defensoria inicia hoje a série Por tão pouco: O crime de bagatela e a justiça social. Serão, ao todo, quatro reportagens publicadas no site oficial da instituição com o objetivo de discutir os desdobramentos de prisões que não deveriam existir por serem decorrentes de casos cujo tratamento deveria ser social e não jurídico.

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