Raul Sousa: “eu vejo o mundo pelo olhar do oprimido”
Texto: Bruno de Castro
Foto: ZeRosa Filho
Colagem/Identidade visual: Valdir Marte
O menino negro, nascido nas brenhas sertanejas e com trejeitos que desafiavam um Cariri cearense forjado na masculinidade tóxica; o garoto que se refugiava na biblioteca para escapar dos ataques racistas e homofóbicos de outros estudantes, foi ele – não os algozes – quem tornou-se um ativista dos direitos humanos. E não só por ser vocacionado. Por isso, sim. Mas também porque conquistou este lugar. Os outros, aqueles que o apelidaram jocosamente de Vera Verão e Naomi Campbell, são só os outros.
Integrante da primeira turma de cotistas negros da DPCE, Raul de Sousa Neves determina a própria atuação como defensor público a partir do lugar social que ocupa. De negro, sobretudo, mas também de gay e sertanejo. De quem conhece a dor do outro, um igual, por já tê-la sentido cortando na carne. “Eu não precisei me identificar como negro. Me identificaram antes. Me carimbaram. Na época, eu não tinha letramento para entender. Hoje, compreendo que a construção de uma hermenêutica negra é olhar o mundo a partir de outros olhos. É ter o olhar a partir do oprimido. E eu vejo o mundo pelo olhar do oprimido. Então, todas as minhas manifestações como defensor sempre passam por esse viés. Eu sempre imprimo esse olhar”, reflete.
Ao fazer isso, Raul alinha-se ao entendimento de grandes juristas negros brasileiros que pregam a prática de um direito antidiscriminatório. São nomes como Luiz Gama, Esperança Garcia, Adilson Moreira, Lívia Vaz, Luslinda Valois e Saulo Mattos, para citar alguns, que pautam a urgência da emancipação negra pela garantia de direitos. De um futuro distante das algemas ainda hoje colocadas em punhos negros por insistirmos, enquanto sociedade, na ideia de que todos, independente de raça, temos as mesmas oportunidades e nosso fracasso é de nossa inteira responsabilidade. Não é.
Raul sabe, os livros e a vida ensinaram, o quanto o fato de ser negro determina destinos. Que entre um branco pobre e um negro pobre no Brasil é a cor da pele quem vai empurrar o negro para alguma vulnerabilidade. E é contra isso que o defensor luta. “Obviamente que ninguém nasce com letramento racial. O que eu construí ao longo da vida me diz de onde vim, quem eu sou e em quais lugares quero estar. Na Defensoria, boa parte das pessoas que eu atendo são negras, desassistidas de direitos e em busca de coisas básicas. Tem gente pedindo fraldas! Tem mães, a maioria negras, lutando pelas terapias dos filhos autistas e também negros. Em um ano no cargo, a sensação é de muita responsabilidade”, analisa.
NEGRITUDE E IRMANDADE
Já tendo passado por Icó, cidade do Sul do Ceará, ele atua hoje em Pacajus, na Região Metropolitana de Fortaleza, e precisa diariamente criar estratégias de atuação para tentar assegurar às pessoas o direito fundamental a terem onde morar. Porque é olhar para elas e enxergar um familiar, em vez de apenas vê-lo. Afinal, os indicadores sociais brasileiros comprovam: a nossa população mais pobre tem cor. Ela é negra. Poderia, então, ser o próprio Raul ali, a depender de uma atuação da Defensoria. Ou a irmã dele, uma mulher negra de pele escura, submetida àquela vulnerabilidade. Ou mesmo o pai, já falecido, e também preto, com um direito violado hoje pelo mesmo Estado que por quatro séculos financiou a exploração de quatro milhões de afro-indígenas e abandonou-os à própria sorte 136 anos atrás, quando foi forçado a abolir a escravização.
Por isso, ele sabe que causa certo incômodo ao apresentar-se como defensor público. Um negro “dotô”? Concursado? No imaginário brasileiro, o “natural” é um homem branco ser o “adêvogado”. O negro, via de regra, é o malandro que precisa ser defendido. “Eu noto o estranhamento, mas também percebo que acontece uma identificação em seguida, de a pessoa querer ser atendida por mim. E acaba sendo uma identificação mútua, dela e minha. Tanto que é muito comum me chamarem de irmão”, revela.
Essa irmandade que une Raul às pessoas negras atendidas por ele em Pacajus é a mesma que aproxima os primeiros cotistas da Defensoria. Com a maioria vindo de fora do Ceará ou, no caso dele mesmo, sendo daqui e atuando fora da cidade onde nasceu, a nova turma virou quase um núcleo familiar. “Eu chamo o Mike [Douglas, atuante em Icó] de irmão, mas a turma é toda maravilhosa.”
Em casa, Raul abriu as portas. Foi o primeiro da família a chegar ao ensino superior, o primeiro a concluir um curso de mestrado e o primeiro a ser aprovado em concurso público. Lugar esse, de servidor público, inclusive, nunca imaginado por ser, conforme resume, “uma coisa muito distante da minha realidade”. Mas que se tornou um horizonte tão logo concluiu o curso de Direito. Do início dos estudos até a posse foram 11 anos.
Chegou a fazer o concurso da DPCE de 2014. Não passou. Foi em busca da Defensoria em outros estados. Não almejava outro órgão do sistema de justiça. E sonhava ficar no Ceará. Pois bem. Aconteceu, mesmo com o concurso no qual passou tendo a concorrência que teve para os cotistas. Era preciso superar 200 pessoas para garantir vaga. Raul foi lá e conseguiu.
“Optei entrar por cotas porque sou um homem negro e quero ocupar esse espaço. Às vezes, bate uma síndrome do impostor e eu penso: “será que era aqui que eu deveria estar?”. Mas aí me dou conta de que é nesse lugar que eu tenho que estar mesmo. Eu amo estar na Defensoria. Adoro atender as pessoas e a equipe é muito boa. Sinto que estou no lugar que eu deveria estar no mundo. Estou aqui e é aqui que vou permanecer. Mas sonho com uma Defensoria ainda mais negra. Como porta-voz da sociedade, a Defensoria tem que ser uma instituição cada vez mais parecida com as pessoas que ela atende”, conclui.
Esta reportagem integra o especial Frente Negra da Defensoria, que narra as histórias de vida dos primeiros cotistas negros da DPCE e revela bastidores do ano inicial de atuação deles. Para ler as demais matérias, clique aqui.