Rayssa Cristina: “não posso ser mais uma porta a se fechar”
Texto: Bruno de Castro
Fotos: ZeRosa Filho
Colagem/Identidade Visual: Valdir Marte
Quando assumiu o cargo de defensora pública do Ceará, um ano atrás, Rayssa Cristina Santiago dos Santos não escondeu pretensões. Oradora da primeira turma de cotistas negros da DPCE, ela revelou no discurso de posse o desejo de florescer no sertão, para onde iria. Escolheu dizeres da escritora mineira Conceição Evaristo, uma negra mais velha, em respeito à ancestralidade, para lhe guiar os itinerários. De alguma forma, sabia que palavras abrem caminhos por dentro e por fora. E, assim, chegou em Morada Nova, no Vale do Jaguaribe, distante 168 quilômetros de Fortaleza.
Foi lá, durante um atendimento corriqueiro de pensão alimentícia, que viveu algo até então impensável para o lugar. Ela e as pessoas do outro lado do balcão, mãe e filha, tinham a mesma cor. Pele escura. Eram negras. E, após a mulher perguntar se Rayssa estudou muito para ser defensora, tudo se resumiu em: “eu confirmei, ela virou pra garota e falou: “filha, você também pode ser assim”. E a menina tinha uma boneca negra nos braços. “Isso pagou uns dez anos de Defensoria. Porque é algo que poucas pessoas experienciaram antes de mim”.
Natural do Rio de Janeiro, cidade brasileira que mais recebeu negros sequestrados de África nos 388 anos de escravização e onde as marcas deste período tenebroso da nossa história ainda compõem a arquitetura urbana do lugar, Rayssa compreendeu cedo que ser uma mulher de pele escura em um país que se desenvolveu graças à exploração da mão-de-obra forçada pelo racismo teria significados – e nem sempre eles seriam bons. Haveria mais nãos do que sins.
Após 14 anos vivendo no Ceará e tendo compreendido a dinâmica perversa de negação da existência local do povo negro, tornar-se defensora é, para ela, uma tentativa de dizer mais ‘sins’ do que ‘nãos’ às pessoas que atende. Quase sempre, gente como ela. Negra. “É muito esforço até chegar ao cargo, sabe? E muita gente veio junto comigo. Por isso, eu sempre pensei muito nos meus. Hoje, percebo que ser defensora é muito mais sobre os outros. É sobre quem eu acolho. E eu não posso ser mais uma porta a se fechar. Porque quem chega na Defensoria já recebeu muita porta na cara. Então, na hora de atuar, eu preciso pensar diferente. Pensar fora da caixa. Até porque muitas vezes nosso primeiro papel é mostrar que as pessoas têm direitos. É explicar o básico; um trabalho que exige cuidado e escuta. Eu atendo muitos negros que nem sabem que são negros”, diz Rayssa.
O PAPEL DECISIVO DA RAÇA
Ela, que foi estagiária da DPCE e servidora do Judiciário cearense antes de tornar-se defensora. Compreende o quão determinante é a raça para a vida de uma pessoa negra. Por isso, tenta ser ponte entre elas e os direitos que reivindicam, tomando como referência, inclusive, episódios da própria vida ou de familiares. “Meu irmão já passou por muitas situações de racismo aqui. Com quantas pessoas eu vejo isso acontecer? Então, é impossível ter o mesmo olhar de uma pessoa branca para casos assim quando eu tenho tantos atravessamentos por ser negra. Eu sou uma mulher negra num espaço de poder. Nada que eu faça vai afastar o impacto disso. E a gente tem que ter consciência do lugar que está. Da responsabilidade que tem, porque o peso do nosso cargo é diferente. Mas nossa interpretação dos problemas sociais também é”, diz.
Por diferente, Rayssa explica: é chegar numa unidade prisional, entrar na cela para falar pessoalmente com a pessoa presa para a qual ela vai prestar assistência jurídica e frustrar as expectativas de quem esperava ver um homem branco como defensor. Para ela, esse tipo de constrangimento é pedagógico porque ajuda a desconstruir o mito de que profissões de poder são masculinas e “sem raça”. Uma mulher preta é a prova do contrário disso.
“Fica todo mundo olhando porque o ‘normal’ seria eu estar do outro lado da grade. O ‘normal’ seria meu irmão ser aquele preso. Porque o ‘normal’ é a pessoa negra ser a criminosa. Então, quando me veem como defensora e se espantam, eu deixo. Acho que esse espanto faz parte da mudança que estamos fazendo, porque quando a gente alcança um local de poder, a gente começa a pontuar questões que precisam ser mudadas. E toda mudança gera desconforto. Em apenas um ano, eu já participei de audiência na qual eu, o juiz e o promotor éramos todos negros e o acusado que era branco. Pra mim, isso foi uma utopia por muito tempo. E só tem sido possível por causa das cotas. Eu vi a faculdade empretecer com elas, espero ver a Defensoria empretecer e quero estar de braços abertos para receber os próximos defensores negros. É importante a gente ter o mesmo perfil das pessoas que atendemos”, reflete Rayssa.
Entre os primeiros defensores cotistas negros da história da DPCE, ela diz existir uma cumplicidade desde o olhar. São, todos eles, juntos, uma espécie de quilombo. Uma Frente Negra. A Frente Negra da Defensoria. A realização de um sonho sonhado por intelectuais como Beatriz Nascimento, Abdias do Nascimento e Lélia Gonzalez, os verdadeiros intérpretes do nosso país e que tanto investiram em um Brasil no qual negras e negros ocupassem espaços de poder e transformassem esta terra em um lugar mais acolhedor da própria identidade (negra) que tem.
“Entre a gente, o quilombo se resume no olhar. Isso sempre vai ligar a gente, como liga todas as pessoas negras que ascendem socialmente. Eu não preciso dizer muito. Então, me sinto extremamente fortalecida de ver negros tão empoderados comigo. A gente sabe o que o olhar do outro quer dizer por um simples motivo: a gente sente da mesma maneira. Porque todos nós vamos ter uma importância onde quer que a gente chegue. E eu ser uma mulher negra nunca pode ser um demérito. Então, eu tenho sempre que lembrar de onde eu vim”, afirma.
Caso um dia a memória falhe, Rayssa, basta revisitar as fotografias da sua própria posse como defensora, nas quais dona Penha, a avó, de 77 anos, 50 dos quais dedicados a atividades de terreiro pela mãe-de-santo que é, assistiu à cerimônia na qual Conceição Evaristo foi citada. Antes de tudo, eram elas quem lá estavam, na história, abrindo caminhos. E, antes delas, outras pessoas negras abriram outros caminhos.
“Se fosse pra dar um recado pra mim mesma pra eu abrir no futuro, quando tiver 20 anos de defensora pública, eu diria: não esqueça de onde você veio, Rayssa, nem da importância que tem em qualquer lugar que você chegar. Porque você é uma mulher negra mudando estruturas”, finaliza a integrante da Frente Negra da Defensoria.
Esta reportagem integra o especial Frente Negra da Defensoria, que narra as histórias de vida dos primeiros cotistas negros da DPCE e revela bastidores do ano inicial de atuação deles. Para ler as demais matérias, clique aqui.